Poderá
objetar-se que eu sublinho, em todos os escritores de que vou
falando, o termo natureza, dando a ele um peso maior do que na
realidade teria no conjunto da obra. Responderei que tendo a isso de
propósito; é minha intenção, de fato, corrigir uma limitação do
juízo crítico muito disseminada hoje em dia, ou seja, a que motiva
a definição da narrativa do século XIX como romance social, que
tem por tema a luta ou, de toda maneira, as relações entre
indivíduo e sociedade. Os termos em questão seriam, então, apenas
dois: homem e sociedade, ou seja, homem e história. A relação
eu-natureza permaneceria, portanto, o grande tema da poesia lírica,
na qual o poeta, em comparação com a imutável vicissitude das
estações e dos elementos, registra seu próprio desespero,
melancolia ou serenidade (um modo de ser que só pode ser relativo e
histórico, o que significa que, na lírica, o termo história
está implícito no eu do poeta). Na narrativa, costuma-se pensar que
a relação homem-natureza continua a ser tema de uma produção
menor, a narrativa de aventura, que desenvolve a grande epopeia
setecentista do Robinson Crusoé;
ou então comparece como veste simbólica de um conteúdo metafísico,
como no Moby Dick, de Melville.
Uma
inclinação instintiva sempre me impeliu na direção dos escritores
de ontem e de hoje nos quais os termos natureza e história (ou
sociedade, se preferirmos) parecem copresentes. Mas não é apenas
uma escolha de gosto: acredito que o termo natureza sempre
está presente em todo grande narrador. Também em Balzac, embora
esteja tão mergulhado na descoberta do grande novo continente que se
lhe abria, a cidade, a infinita Paris, as contínuas viradas da sorte
de uma sociedade em movimento. Balzac, de fato, é aquele que
descobre a vitalidade natural, quase biológica, da grande cidade.
Caminhos equívocos, salões luminosos, sórdidos entresols,
prisões, casas de aluguel, são descritos com o vigor admirado —
que não raro transcende em retórica — com que Bernardin de
Saint-Pierre ou Chateaubriand saudavam as florestas das Américas. A
Paris de Balzac é a verdadeira cidade-selva; em nenhum de seus
epígonos tardios que abusaram dessa ordem de similitudes há aquele
sentido de sumos terrestres, de linfa vegetal, de cavernas ou
profundidades submarinas que emana dos itinerários de Vautrin ou de
Rubempré: verdadeiros homens da natureza esses seus personagens,
homens e mulheres dotados de um vigor atlético nas virtudes e nos
vícios, para quem toda ação e toda explosão de sentimentos parece
resolver-se numa prova de saúde ou de robustez. Em Balzac, a força
humana parece ainda recusar-se a admitir que a luta com a sociedade
oferece dificuldades bem diferentes daquelas da luta com a natureza;
ainda assim, já está no ar a consciência de que as epopeias de
vitória podem ser mentirosas, de que é preciso preparar o homem
para que ele tome ciência de que não é menos homem quando suas
batalhas são sem esperanças, de que a dignidade humana se realiza
na maneira como ele enfrenta a vida, ainda que seja derrotado.
Italo
Calvino, in Assunto encerrado
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