quarta-feira, 5 de julho de 2017

Batalhas sem esperanças

Poderá objetar-se que eu sublinho, em todos os escritores de que vou falando, o termo natureza, dando a ele um peso maior do que na realidade teria no conjunto da obra. Responderei que tendo a isso de propósito; é minha intenção, de fato, corrigir uma limitação do juízo crítico muito disseminada hoje em dia, ou seja, a que motiva a definição da narrativa do século XIX como romance social, que tem por tema a luta ou, de toda maneira, as relações entre indivíduo e sociedade. Os termos em questão seriam, então, apenas dois: homem e sociedade, ou seja, homem e história. A relação eu-natureza permaneceria, portanto, o grande tema da poesia lírica, na qual o poeta, em comparação com a imutável vicissitude das estações e dos elementos, registra seu próprio desespero, melancolia ou serenidade (um modo de ser que só pode ser relativo e histórico, o que significa que, na lírica, o termo história está implícito no eu do poeta). Na narrativa, costuma-se pensar que a relação homem-natureza continua a ser tema de uma produção menor, a narrativa de aventura, que desenvolve a grande epopeia setecentista do Robinson Crusoé; ou então comparece como veste simbólica de um conteúdo metafísico, como no Moby Dick, de Melville.
Uma inclinação instintiva sempre me impeliu na direção dos escritores de ontem e de hoje nos quais os termos natureza e história (ou sociedade, se preferirmos) parecem copresentes. Mas não é apenas uma escolha de gosto: acredito que o termo natureza sempre está presente em todo grande narrador. Também em Balzac, embora esteja tão mergulhado na descoberta do grande novo continente que se lhe abria, a cidade, a infinita Paris, as contínuas viradas da sorte de uma sociedade em movimento. Balzac, de fato, é aquele que descobre a vitalidade natural, quase biológica, da grande cidade. Caminhos equívocos, salões luminosos, sórdidos entresols, prisões, casas de aluguel, são descritos com o vigor admirado — que não raro transcende em retórica — com que Bernardin de Saint-Pierre ou Chateaubriand saudavam as florestas das Américas. A Paris de Balzac é a verdadeira cidade-selva; em nenhum de seus epígonos tardios que abusaram dessa ordem de similitudes há aquele sentido de sumos terrestres, de linfa vegetal, de cavernas ou profundidades submarinas que emana dos itinerários de Vautrin ou de Rubempré: verdadeiros homens da natureza esses seus personagens, homens e mulheres dotados de um vigor atlético nas virtudes e nos vícios, para quem toda ação e toda explosão de sentimentos parece resolver-se numa prova de saúde ou de robustez. Em Balzac, a força humana parece ainda recusar-se a admitir que a luta com a sociedade oferece dificuldades bem diferentes daquelas da luta com a natureza; ainda assim, já está no ar a consciência de que as epopeias de vitória podem ser mentirosas, de que é preciso preparar o homem para que ele tome ciência de que não é menos homem quando suas batalhas são sem esperanças, de que a dignidade humana se realiza na maneira como ele enfrenta a vida, ainda que seja derrotado.
Italo Calvino, in Assunto encerrado

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