Certo
era que eu não tinha apetência para herói póstumo. A condecoração
devia ser evitada, custasse os olhos e a cara. Que poderia eu fazer,
fantasma sem lei nem respeito? Ainda pensei reaparecer no meu corpo
de quando eu era vivo, moço e felizão. Me retroverteria pelo umbigo
e surgiria, do outro lado, fantasma palpável, com voz entre os
mortais. Mas um xipoco que reocupa o seu antigo corpo arrisca perigos
muito mortais: tocar ou ser tocado basta para descambalhotar corações
e semear fatalidades.
Consultei
o pangolim, meu animal de estimação. Há alguém que desconheça os
poderes deste bicho de escamas, o nosso halakavuma? Pois este
mamífero mora com os falecidos. Desce dos céus aquando das
chuvadas. Tomba na terra para entregar novidades ao mundo, as
proveniências do porvir. Eu tenho um pangolim comigo, como em vida
tive um cão. Ele se enrosca a meus pés e faço-lhe uso como
almofada. Perguntei ao meu halakavuma o que devia fazer.
— Não
quer ser herói?
Mas
herói de quê, amado por quem? Agora, que o país era uma machamba
de ruínas, me chamavam a mim, pequenito carpinteiro!? O pangolim se
intrigou:
— Não
lhe apetece ficar vivo, outra vez?
— Não.
Como está a minha terra, não me apetece.
O
pangolim rodou sobre si próprio. Perseguia a extremidade do corpo ou
afinava a voz para que eu lhe entendesse? Porque não é com qualquer
que o bicho fala. Ergueu-se sobre as patas traseiras, nesse jeito de
gente que tremexia comigo. Apontou o pátio da fortaleza e disse:
— Veja
à sua volta, Ermelindo. Mesmo no meio destes destroços nasceram
flores silvestres.
— Não
quero regressar para lá.
— É
que aquele será, para sempre, o teu jardim: entre pedra ferida e
flor selvagem.
Me
irritavam aquelas vagueações do escamudo. Lhe lembrei que eu queria
era conselho, uma saída. O halakavuma ganhou as gravidades e disse:
— Você,
Ermelindo, você deve remorrer.
Voltar
a falecer? Se nem foi fácil deixar a vida da primeira vez! Seguindo
a tradição de minha família não deveria ser sequer tarefa
fazível. Meu avô, por exemplo, durou infinidades. Com certeza, não
morreu ainda. O velho deixava a perna de fora do corpo, dormia junto
de perigosas folhagens. Oferecia-se, desse modo, à mordedura das
cobras. O veneno, em doses, nos dá mais vivência. Falava assim. E
parecia a vida lhe dava razão: cada vez ele ficava mais cheio de
feitio e forma. O halakavuma se parecia com meu avô, teimoso como um
pêndulo. O bicho insistia-me:
—
Escolha um que esteja próximo para
acabar.
O
lugar mais seguro não é no ninho da cobra-mamba? Eu devia emigrar
em corpo que estivesse mais perto de morrer. Apanhar boleia dessa
outra morte e dissolver-me nessa findação. Não parecia difícil.
No asilo não faltaria quem estivesse para morrer.
— Quer
dizer que eu vou ter que fantasmear-me por um alguém?
— Você
irá exercer-se como um xipoco.
—
Deixe-me pensar, disse eu.
No
fundo, a decisão já tinha sido tomada. Eu fingia apenas ser dono da
minha vontade. Nessa mesma noite, eu estava transitando para xipoco.
Pelas outras palavras, me transformava num “passa-noite”,
viajando em aparência de um outro alguém. Caso reocupasse meu
próprio corpo eu só seria visível do lado da frente. Visto por
detrás não passaria de oco de buraco. Um vazio desocupado. Mas eu
iria residir em corpo alheio. Da prisão da cova eu transitava para a
prisão do corpo. Eu estava interdito de tocar a vida, receber
diretamente o sopro dos ventos. De meu recanto eu veria o mundo
translucidar, ilúcido. Minha única vantagem seria o tempo. Para os
mortos, o tempo está pisando nas pegadas da véspera. Para eles
nunca há surpresa.
No
princípio, ainda depositei dúvida: esse hala-kavuma dizia a
verdade? Ou inventava, de tanto estar longe do mundo? Há anos que
ele não descia ao solo, suas unhas já cresciam a redondear umas
tantas voltas. Se mesmo as patas dele tinham saudade do chão, por
que motivo sua cabeça não fantasiava loucuras? Mas, depois, eu me
fui deixando ocupar pela antecipação da viagem ao mundo dos vivos.
Me
enchi tanto desta vontade que até sonhei sem chuva nem noite. O que
sonhei? Sonhei que me enterravam devidamente, como mandam nossas
crenças. Eu falecia sentado, queixo na varanda dos joelhos. Descia à
terra nessa posição, meu corpo assentava sobre areia que haviam
retirado de um morro de muchém. Areia viva, povoada de andanças.
Depois me deitavam terra com suavidade de quem veste um filho. Não
usavam pás. Apenas serviço de mãos. Paravam quando a areia me
chegava aos olhos. Então, espetavam à minha volta paus de acácias.
Tudo em aptidão de ser flor. E para convocar a chuva me cobriam de
terra molhada. Assim eu me aprendia: um vivo pisa o chão, um morto é
pisado pelo chão.
E
sonhei ainda mais: após a minha morte, todas as mulheres do mundo
dormiam ao relento. Não era apenas a viúva que estava interdita a
abrigar-se, como é hábito da nossa crença. Não. Era como se todas
as mulheres tivessem, em mim, perdido o esposo. Todas estavam sujas
por minha morte. O luto se estendia por todas as aldeias como um
cacimbo espesso. As lamparinas iluminavam o milho, mãos trêmulas
passavam com o cadinho do fogo entre os espigueirais. Limpavam-se os
campos dos maus-olhados.
No
dia seguinte, mal acordei me pus a abanar o halakavuma. Queria saber
quem era a pessoa que ia ocupar.
— É
um que está para vir.
— Um?
Qual?
— É
um de fora. Vai chegar amanhã. Depois, acrescentou: Foi pena não me
ter lembrado antes. Uma semana antes e tudo estaria já resolvido. Há
uns poucochinhos dias mataram um grande, lá no asilo.
— Que
grande?
— O
diretor do asilo. Foi morto ao tiro.
Por
motivo desse assassinato vinha da capital um agente da polícia. Eu
que me instalasse no corpo desse inspetor e seria certo que morreria.
— Você
vai entrar nesse polícia. Deixe o resto por minhas contas.
—
Quanto tempo vou ficar lá, na vida?
— Seis
dias. É o tempo do polícia ser morto.
Era
a primeira vez que eu iria sair da morte. Por estreada vez iria
escutar, sem o filtro da terra, as humanas vozes do asilo. Ouvir os
velhos sem que eles nunca me sentissem. Uma dúvida me enrugava. E se
eu acabasse gostando de ser um “passa-noite”? E se, no momento de
morrer por segunda vez, me tivesse apaixonado pela outra margem?
Afinal, eu era um morto solitário. Nunca tinha passado de um
pré-antepassado. O que surpreendia era eu não ter lembrança do
tempo que vivi. Recordava somente certos momentos mas sempre
exteriores a mim. Recordava, sobretudo, o perfume da terra quando
chovia. Vendo a chuva escorrendo por Janeiro, me perguntava: como
sabemos que este cheiro é da terra e não do céu? Mas não
lembrava, no entanto, nenhuma intimidade do meu viver. Será sempre
assim? Os restantes mortos teriam perdido a privada memória? Não
sei. Em meu caso, contudo, eu aspirava ganhar acesso às minhas
privadas vivências. O que queria lembrar, muito-muito, eram as
mulheres que amei. Confessei esse desejo ao pangolim. Ele me sugeriu,
então:
— Você
mal chegue à vida queime umas sementes de abóbora.
— Para
quê?
— Não
sabe? Queimar pevides faz lembrar amantes esquecidos.
No
dia seguinte, porém, eu repensei a minha viagem à vida. Esse
pangolim já estava demasiado gasto. Poderia eu confiar em seus
poderes? Seu corpo rangia que nem curva. Seu cansaço derivava do
peso de sua carapaça. O pangolim é como o cágado — caminha junto
com a casa. Daí seus extremos cansaços.
Chamei
o halakavuma e lhe disse da minha recusa em me transferir para o lado
da vida. Ele que entendesse: a força do crocodilo é a água. Minha
força era estar longe dos viventes. Eu nunca soube viver, mesmo
quando era vivo. Agora, mergulhado em carne alheia, eu seria roído
por minhas próprias unhas.
— Ora,
Ermelindo: você vá, o tempo lá está bonito, molhado a boas
chuvinhas.
Eu
que fosse e agasalhasse a alma de verde. Quem sabe eu encontrasse uma
mulher e tropeçasse em paixão? O pangolim avaselinava a conversa e
engrossava a vista. Ele sabia que não era assim fácil. Eu tinha
medo, o mesmo medo que os vivos sentem quando se imaginam morrer. O
pangolim me assegurava futuros mais-que-perfeitos. Tudo se passaria
ali, na mesmíssima varanda, no embaixo da árvore onde eu estava
enterrado. Olhei o frangipani e senti saudade antecedida dele. Eu e a
árvore nos semelhávamos. Quem, alguma vez, tinha regado as nossas
raízes? Ambos éramos criaturas amamentadas a cacimbo. O halakavuma
tinha também suas gratidões com o frangipani. Apontou a varanda e
disse:
— Aqui
é onde os deuses vêm rezar.
Mia
Couto, in A
varanda do Frangipani
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