domingo, 18 de junho de 2017

Uns pós na bebedeira (fala de Deusqueira)

Tenho saudades de minha casa, lá na Itália.
Também eu gostava de ter um lugarzinho meu, onde pudesse chegar e me aconchegar. — Não tem, Ana?
Não tenho? Não temos, todas nós, as mulheres.
Como não? — Vocês, homens, vêm para casa. Nós somos a casa.
Extrato de um diálogo entre o italiano e Deusqueira

Massimo Risi chegou à sede da administração transpirando. Antes de entrar se cheirou e franziu-se: guardava o perfume dela, de Temporina. Perguntou-me se aquilo era notável e eu descansei-o, apressando-o a que entrasse no gabinete. Sentia o mau gosto da bebida que Temporina lhe oferecera. Engoliu em seco várias vezes. Vinha atrasado, mas o ministro nem fez menção sobre o respeito do tempo. Apontou para o gravador, realizado:
Já falei com Ana Deusqueira. Gravei tudo, conforme se combinou.
Olhei em volta e me admirei: o ministro estava só. Nem administrador nem Chupanga figuravam na sala. Sentámos enquanto o governante pressionou o botão do gravador e a voz da prostituta se espalhou pelo quarto. O italiano não escondeu um arrepio. A voz de Deusqueira era carnal, incendiadora como bebida de afugentar razão. Os dois homens fitavam além parede, olhar entorpecido. Ficaram assim, emparvecidos, longos minutos. Massimo enterrou a cabeça entre as mãos e pediu que o ministro recomeçasse a gravação do princípio. De novo, as palavras de Deusqueira encheram o lugar:

Começo assim, explico esse meu serviço. Para dizer uma coisa, o seguinte: o senhor, num próximo tempo, vai deixar de ser ministro. Transitará para ex-ministro. Mas eu não transitarei nunca. Uma puta nunca é “ex”. Há ex-enfermeira, há ex-ministro... só não existe ex-prostituta. A putice é condenação eterna, uma mancha que não se lava nunca mais.
Deixe-me explicar, não me interrompa. O senhor é ministro, eu sou uma simples mulher de virar lençol. O senhor há-de ouvir por aí mais mexe-língua que barulho de folha pisada. Faz tempos que virei má-afamada. Mas tudo isso nem passa de conversa afilhada. Espalham aí que dou donativo de corpo, faço de graça com os que não podem pagar. Dizem dou cambalhota de encomenda, só assim, pela alma dos defuntos. Vale a pena responder a essas mentiras? É inútil como limpar a ferrugem do prego. Eu é que sei a minha vida. Quem conhece a sujidade do muro é o caracol que trepa na parede. Mais ninguém.
Sabe o que eu penso, agora? Ando a desbotar coxa com ingratos, é como arranhar pedra com as unhas. Este mundo tem mais dentes que bocas. É mais fácil morder que beijar, acredite, doutor. Aproveito dizer isto, que eu nunca falei com um ministro central, está entender?

O ministro desligou o aparelho. Olhou o italiano, que parecia ausente. O estrangeiro só quebrou a sua imobilidade para se cheirar a si próprio.
Quer que passe um pouco à frente?
Não, deixe andar — respondeu Massimo.
É que há aqui umas passagens...
Deixe a cassete rodar.
Não acho que vai adiantar.
O senhor sabe o que está em causa neste assunto?
Mas isto nunca vai se esclarecer, vocês não entendem...
O senhor ministro sabe bem que isto tem que se esclarecer.
O ministro parecia resignar-se, quando bateram à porta. Era o adjunto, Chupanga. O ministro negou-lhe permissão de entrar. Não queria que mais ninguém partilhasse daquelas confissões. De novo ligou o aparelho. A voz de Ana Deusqueira voltou a governar a ampla sala.

Senta aqui, Excelência. Senta que é colchão limpo, lençol lavadinho. Isso, isso mesmo. Onde estava nem lhe via como deve ser. O senhor tem olhos de jejum. Me desculpe, o que eu mais vejo é pelos olhos. Vida miudinha, grandezas e infinitos: tudo está escrito no olhar. Quer apoiar nesta almofada? Não quer? Está certo, o senhor fica na comodidade do seu desejo.
Pronto. Agora, vou ao assunto. Quer saber toda a verdade do acontecido? Os soldados estrangeiros explodem, sim senhor. Não é que pisam em mina, não. Somos nós, mulheres, os engenhos explosivos. Não faça essa cara. Nós temos poderes, o senhor sabe. Ou já esqueceu as forças da terra? Pergunta por aí, todos sabem. O povo não fala, mas estão sempre nascendo falagens. O capim, não parece, mas dá flor. Só não vê quem está longe. Nós só fingimos ficar calados. O senhor sabe, não é? Pode pôr o braço aqui, na minha perna superior, não há problema. Vamos, não fica aí, entremetido, envergonhado, parece o halakavuma.
O que acontece eu lhe vou dizer, lhe conto agora o sucedido nessa noite. Mas me deixe desabotoar uns tantos botões, veja como o senhor está transpirar...

O dedo zeloso do ministro voltou a desligar o aparelho. Respirou fundo antes de beber de um trago um copo de água.
Beba, está fervida.
O italiano serviu-se por duas vezes. Parecia confiar naquela água, com título na garrafa, provas e garantias. Necessitava lavar-se, por dentro. E já lhe nasciam suspeitas sobre a bebida que Temporina o tinha feito beber na véspera.
Está ver como são as pessoas daqui? Falam muito para dizerem pouco. Essa gaja ainda não disse nada.
Mas eu preciso informação concreta. Pessoas não desaparecem.
Explodiram. Você não acredita, mas foi mesmo assim — insistiu o ministro, tentando abrir uma janela empenada.
Mas, assim, como? Explodido sem explosivo?
Foi o que a prostituta me contou.
Ligue lá o gravador. Quero ouvir até ao fim.
Não. É melhor eu resumir. É que já estamos a gastar muitas pilhas.
Vou mandar vir mais pilhas.
Contrafeito, o ministro repôs o depoimento de Ana Deusqueira. E, de novo, a voz quente se espalhou, chuva tombando em nossa alma.

O soldado zambiano chegou, exibindo a farda. Entrou no bar, arrotando presença. Batia os calcanhares, mandando vir as bebidas. Não gostamos, sabe, esses ares de dono. Só fingimos simpatias, mais nada. Nessa bebida, eu vi, alguém juntou uns pós tratados, feitiços desses, nossos. Não sei quem, nem sei o quê. Obra dos homens, ciumeiras deles que não querem ver mexidas as mulheres da terra. E eu, Excelência, eu até me sinto orgulhada nesses ciúmes deles. É que nunca eu fui de ninguém. Nunca. Haver homens que me disputam me faz sentir pertencida, faz conta que sou mulher de um só, exclusivo. Porém, foi assim. Isto que lhe conto não tem ouvido nem boca. Eu vi os pós, caindo como areia na cerveja do desgraçado. Vi tudo por inteiro. Quando esse zambiano me pegou na mão eu já sabia o destino dele. Lhe acompanhei sem pena…

A gravação foi de novo interrompida. O italiano, agastado, perguntou:
Termina assim? Isto parece que foi cortado.
Cortado? Quem?
Sim, parece que a mulher ainda estava a falar.
Ah, mas isso ela estava só a falar... estava a falar a língua daqui.
E o que dizia?
É que não entendo bem-bem esse dialeto desta gente.
Arrumou uns papéis na sua mala e explicou-se: ele tinha sérios afazeres na capital. Não podia prolongar sua estada por um lugar tão desvalido. Naquela mesma tarde ele regressaria. Deixara instruções claras à administração local.
O senhor fique e fale à vontade com quem entender. Já dei ordem para ter acesso a todo o lado.
O ministro me pediu, então, que fosse à secretaria e chamasse o adjunto Chupanga. Meti-me pelos corredores entendendo ter sido afastado por conveniência de conversas entre Risi e o governante. A tarde já ia tardia, os funcionários já haviam despegado. Só restava o fiel Chupanga. Quando o chamei ele muito se espantou. A inveja lhe roía perante eu ter sido aceite na intimidade da conversa dos chefes? Pela primeira vez, ante mim compareceu um homem submisso, desajeitoso. E logo ele, predispronto:
Já sei, deve ser por causa da fotografia de Sua Excelência.
E se encaminhou para o gabinete onde era chamado, com uma enorme moldura na mão. Logo à entrada, o ministro inquiriu:
Ainda não penduraste a moldura?
Chupanga apresentou prontas desculpas. Aquilo era um retrato presidencial, havia que limpar bem as paredes antes de fixar a moldura oficial.
Cumprimenta o senhor Risi, ele vai trabalhar consigo neste assunto.
O adjunto Chupanga se atrapalhou no gesto de escolher a mão a ser apertada. Nesse intervalo, o retrato se desamparou e o vidro se estilhaçou. O homem se arrepiou, aterrorizado ante o olhar grave do ministro:
Meu Deus!
E recuou como se temesse que os vidros lhe saltassem. E agora? E agora, lhe perguntava o ministro. Vidros ali, na vila, não haveria. Como cobrir a fotografia, proteger Excelência dos raios solares e não solares? Chupanga não encadeava palavra. De repente, saiu correndo e logo voltou com um vidro na mão:
Veja, Excelência, arranjei outro vidro, tirei do outro retrato, do anterior...
Não terminou a frase. Uma enorme explosão deflagrou: o mundo parecia desconjuntar-se. Janelas esvoaçaram inteiras e o italiano foi projetado de encontro à parede. Também eu fui arremassado no meio do chão. Passado o susto, vi Chupanga, arrependente, com um naco de vidro na mão enquanto o administrador saía, esbafurado, porta afora. Corremos atrás dele. Lá fora, a gente parecia ter desavençado com a ordem. Grassava a completa confusão. O ministro ordenou que voltássemos a entrar. Não merecia a pena correr os riscos. Ele mandaria uns informadores saber do que se tinha passado. Entretanto, deveríamos regressar à pensão onde aguardaríamos novas orientações.
Na pensão nos informaram: não longe dali, tinha ocorrido mais um desses estranhos rebentamentos. A escassa distância um outro soldado das Nações Unidas havia desaparecido, desfeito em mistério.
Desta vez, dizem, foi um paquistanês.
Só mais tarde saberíamos o que se tinha passado, através de um relatório do administrador local. O ministro lhe exigira a imediata redação. Na manhã seguinte, me convocaram e me entregaram o envelope. Para que fizesse chegar ao italiano por vias informais. Porque os papéis não tinham carimbo oficial. Constituíam uma carta, de letra e coração abertos. E logo se decifrava o rebentamento: a nova vítima era um paquistanês, responsável pela guarda da residência oficial do administrador Estêvão Jonas. Desta feita, a explosão dera-se em plenas entranhas do Poder.
Chegado ao quarto, na solidão de tudo, comecei a ler as datilografias de Estêvão Jonas. O que me deu estranheza foi o tom de carta, de feitio humano. Li foi nas extralinhas.
Mia Couto, in O último voo do flamingo

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