— Tenho
saudades de minha casa, lá na Itália.
—
Também eu gostava de ter um
lugarzinho meu, onde pudesse chegar e me aconchegar. — Não tem,
Ana?
— Não
tenho? Não temos, todas nós, as mulheres.
— Como
não? — Vocês, homens, vêm para casa. Nós somos a casa.
Extrato
de um diálogo entre o italiano e Deusqueira
Massimo
Risi chegou à sede da administração transpirando. Antes de entrar
se cheirou e franziu-se: guardava o perfume dela, de Temporina.
Perguntou-me se aquilo era notável e eu descansei-o, apressando-o a
que entrasse no gabinete. Sentia o mau gosto da bebida que Temporina
lhe oferecera. Engoliu em seco várias vezes. Vinha atrasado, mas o
ministro nem fez menção sobre o respeito do tempo. Apontou para o
gravador, realizado:
— Já
falei com Ana Deusqueira. Gravei tudo, conforme se combinou.
Olhei
em volta e me admirei: o ministro estava só. Nem administrador nem
Chupanga figuravam na sala. Sentámos enquanto o governante
pressionou o botão do gravador e a voz da prostituta se espalhou
pelo quarto. O italiano não escondeu um arrepio. A voz de Deusqueira
era carnal, incendiadora como bebida de afugentar razão. Os dois
homens fitavam além parede, olhar entorpecido. Ficaram assim,
emparvecidos, longos minutos. Massimo enterrou a cabeça entre as
mãos e pediu que o ministro recomeçasse a gravação do princípio.
De novo, as palavras de Deusqueira encheram o lugar:
Começo
assim, explico esse meu serviço. Para dizer uma coisa, o seguinte: o
senhor, num próximo tempo, vai deixar de ser ministro. Transitará
para ex-ministro. Mas eu não transitarei nunca. Uma puta nunca é
“ex”. Há ex-enfermeira, há ex-ministro... só não existe
ex-prostituta. A putice é condenação eterna, uma mancha que não
se lava nunca mais.
Deixe-me
explicar, não me interrompa. O senhor é ministro, eu sou uma
simples mulher de virar lençol. O senhor há-de ouvir por aí mais
mexe-língua que barulho de folha pisada. Faz tempos que virei
má-afamada. Mas tudo isso nem passa de conversa afilhada. Espalham
aí que dou donativo de corpo, faço de graça com os que não podem
pagar. Dizem dou cambalhota de encomenda, só assim, pela alma dos
defuntos. Vale a pena responder a essas mentiras? É inútil como
limpar a ferrugem do prego. Eu é que sei a minha vida. Quem conhece
a sujidade do muro é o caracol que trepa na parede. Mais ninguém.
Sabe
o que eu penso, agora? Ando a desbotar coxa com ingratos, é como
arranhar pedra com as unhas. Este mundo tem mais dentes que bocas. É
mais fácil morder que beijar, acredite, doutor. Aproveito dizer
isto, que eu nunca falei com um ministro central, está entender?
O
ministro desligou o aparelho. Olhou o italiano, que parecia ausente.
O estrangeiro só quebrou a sua imobilidade para se cheirar a si
próprio.
— Quer
que passe um pouco à frente?
— Não,
deixe andar — respondeu Massimo.
— É
que há aqui umas passagens...
— Deixe
a cassete rodar.
— Não
acho que vai adiantar.
— O
senhor sabe o que está em causa neste assunto?
— Mas
isto nunca vai se esclarecer, vocês não entendem...
— O
senhor ministro sabe bem que isto tem que se esclarecer.
O
ministro parecia resignar-se, quando bateram à porta. Era o adjunto,
Chupanga. O ministro negou-lhe permissão de entrar. Não queria que
mais ninguém partilhasse daquelas confissões. De novo ligou o
aparelho. A voz de Ana Deusqueira voltou a governar a ampla sala.
Senta
aqui, Excelência. Senta que é colchão limpo, lençol lavadinho.
Isso, isso mesmo. Onde estava nem lhe via como deve ser. O senhor tem
olhos de jejum. Me desculpe, o que eu mais vejo é pelos olhos. Vida
miudinha, grandezas e infinitos: tudo está escrito no olhar. Quer
apoiar nesta almofada? Não quer? Está certo, o senhor fica na
comodidade do seu desejo.
Pronto.
Agora, vou ao assunto. Quer saber toda a verdade do acontecido? Os
soldados estrangeiros explodem, sim senhor. Não é que pisam em
mina, não. Somos nós, mulheres, os engenhos explosivos. Não faça
essa cara. Nós temos poderes, o senhor sabe. Ou já esqueceu as
forças da terra? Pergunta por aí, todos sabem. O povo não fala,
mas estão sempre nascendo falagens. O capim, não parece, mas dá
flor. Só não vê quem está longe. Nós só fingimos ficar calados.
O senhor sabe, não é? Pode pôr o braço aqui, na minha perna
superior, não há problema. Vamos, não fica aí, entremetido,
envergonhado, parece o halakavuma.
O
que acontece eu lhe vou dizer, lhe conto agora o sucedido nessa
noite. Mas me deixe desabotoar uns tantos botões, veja como o senhor
está transpirar...
O
dedo zeloso do ministro voltou a desligar o aparelho. Respirou fundo
antes de beber de um trago um copo de água.
— Beba,
está fervida.
O
italiano serviu-se por duas vezes. Parecia confiar naquela água, com
título na garrafa, provas e garantias. Necessitava lavar-se, por
dentro. E já lhe nasciam suspeitas sobre a bebida que Temporina o
tinha feito beber na véspera.
— Está
ver como são as pessoas daqui? Falam muito para dizerem pouco. Essa
gaja ainda não disse nada.
— Mas
eu preciso informação concreta. Pessoas não desaparecem.
—
Explodiram. Você não acredita, mas
foi mesmo assim — insistiu o ministro, tentando abrir uma
janela empenada.
— Mas,
assim, como? Explodido sem explosivo?
— Foi
o que a prostituta me contou.
— Ligue
lá o gravador. Quero ouvir até ao fim.
— Não.
É melhor eu resumir. É que já estamos a gastar muitas pilhas.
— Vou
mandar vir mais pilhas.
Contrafeito,
o ministro repôs o depoimento de Ana Deusqueira. E, de novo, a voz
quente se espalhou, chuva tombando em nossa alma.
O
soldado zambiano chegou, exibindo a farda. Entrou no bar, arrotando
presença. Batia os calcanhares, mandando vir as bebidas. Não
gostamos, sabe, esses ares de dono. Só fingimos simpatias, mais
nada. Nessa bebida, eu vi, alguém juntou uns pós tratados, feitiços
desses, nossos. Não sei quem, nem sei o quê. Obra dos homens,
ciumeiras deles que não querem ver mexidas as mulheres da terra. E
eu, Excelência, eu até me sinto orgulhada nesses ciúmes deles. É
que nunca eu fui de ninguém. Nunca. Haver homens que me disputam me
faz sentir pertencida, faz conta que sou mulher de um só, exclusivo.
Porém, foi assim. Isto que lhe conto não tem ouvido nem boca. Eu vi
os pós, caindo como areia na cerveja do desgraçado. Vi tudo por
inteiro. Quando esse zambiano me pegou na mão eu já sabia o destino
dele. Lhe acompanhei sem pena…
A
gravação foi de novo interrompida. O italiano, agastado, perguntou:
—
Termina assim? Isto parece que foi
cortado.
—
Cortado? Quem?
— Sim,
parece que a mulher ainda estava a falar.
— Ah,
mas isso ela estava só a falar... estava a falar a língua daqui.
— E
o que dizia?
— É
que não entendo bem-bem esse dialeto desta gente.
Arrumou
uns papéis na sua mala e explicou-se: ele tinha sérios afazeres na
capital. Não podia prolongar sua estada por um lugar tão desvalido.
Naquela mesma tarde ele regressaria. Deixara instruções claras à
administração local.
— O
senhor fique e fale à vontade com quem entender. Já dei ordem para
ter acesso a todo o lado.
O
ministro me pediu, então, que fosse à secretaria e chamasse o
adjunto Chupanga. Meti-me pelos corredores entendendo ter sido
afastado por conveniência de conversas entre Risi e o governante. A
tarde já ia tardia, os funcionários já haviam despegado. Só
restava o fiel Chupanga. Quando o chamei ele muito se espantou. A
inveja lhe roía perante eu ter sido aceite na intimidade da conversa
dos chefes? Pela primeira vez, ante mim compareceu um homem submisso,
desajeitoso. E logo ele, predispronto:
— Já
sei, deve ser por causa da fotografia de Sua Excelência.
E
se encaminhou para o gabinete onde era chamado, com uma enorme
moldura na mão. Logo à entrada, o ministro inquiriu:
— Ainda
não penduraste a moldura?
Chupanga
apresentou prontas desculpas. Aquilo era um retrato presidencial,
havia que limpar bem as paredes antes de fixar a moldura oficial.
—
Cumprimenta o senhor Risi, ele vai
trabalhar consigo neste assunto.
O
adjunto Chupanga se atrapalhou no gesto de escolher a mão a ser
apertada. Nesse intervalo, o retrato se desamparou e o vidro se
estilhaçou. O homem se arrepiou, aterrorizado ante o olhar grave do
ministro:
— Meu
Deus!
E
recuou como se temesse que os vidros lhe saltassem. E agora? E agora,
lhe perguntava o ministro. Vidros ali, na vila, não haveria. Como
cobrir a fotografia, proteger Excelência dos raios solares e não
solares? Chupanga não encadeava palavra. De repente, saiu correndo e
logo voltou com um vidro na mão:
— Veja,
Excelência, arranjei outro vidro, tirei do outro retrato, do
anterior...
Não
terminou a frase. Uma enorme explosão deflagrou: o mundo parecia
desconjuntar-se. Janelas esvoaçaram inteiras e o italiano foi
projetado de encontro à parede. Também eu fui arremassado no meio
do chão. Passado o susto, vi Chupanga, arrependente, com um naco de
vidro na mão enquanto o administrador saía, esbafurado, porta
afora. Corremos atrás dele. Lá fora, a gente parecia ter
desavençado com a ordem. Grassava a completa confusão. O ministro
ordenou que voltássemos a entrar. Não merecia a pena correr os
riscos. Ele mandaria uns informadores saber do que se tinha passado.
Entretanto, deveríamos regressar à pensão onde aguardaríamos
novas orientações.
Na
pensão nos informaram: não longe dali, tinha ocorrido mais um
desses estranhos rebentamentos. A escassa distância um outro soldado
das Nações Unidas havia desaparecido, desfeito em mistério.
— Desta
vez, dizem, foi um paquistanês.
Só
mais tarde saberíamos o que se tinha passado, através de um
relatório do administrador local. O ministro lhe exigira a imediata
redação. Na manhã seguinte, me convocaram e me entregaram o
envelope. Para que fizesse chegar ao italiano por vias informais.
Porque os papéis não tinham carimbo oficial. Constituíam uma
carta, de letra e coração abertos. E logo se decifrava o
rebentamento: a nova vítima era um paquistanês, responsável pela
guarda da residência oficial do administrador Estêvão Jonas. Desta
feita, a explosão dera-se em plenas entranhas do Poder.
Chegado
ao quarto, na solidão de tudo, comecei a ler as datilografias de
Estêvão Jonas. O que me deu estranheza foi o tom de carta, de
feitio humano. Li foi nas extralinhas.
Mia
Couto, in O último voo do flamingo
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