Onde
eu estava ali era um quieto. O ameno âmbito, lugar entre-as-guerras
e invasto territorinho, fundo de chácara. Várias árvores. A manhã
se-a-si bela: alvoradas aves. O ar andava, terso, fresco. O céu —
uma blusa. Uma árvore disse quantas flores, outra respondeu dois
pássaros. Esses, limpos. Tão lindos, meigos, quê? Sozinhos
adeuses. E eram o amor em sua forma aérea. Juntos voaram, às
alamedas frutíferas, voam com uniões e discrepâncias. Indo que
mais iam, voltavam. O mundo é todo encantado. Instante estive lá,
por um evo, atento apenas ao auspício.
Perto,
pelo pomar, tem-se o plenário deles, que pilucam as frutas:
gaturamossabiassanhaços. De seus pios e cantos respinga um
pouco até aqui. Vez ou vez, qual que qual, vem um, pessoativo, se
avizinha. Aonde já se despojaram as laranjeiras, do redondo de
laranjas só resta uma que outra, se sim podre ou muruchuca, para se
picorar. Mas há uma figueira, parrada, a grande opípara. Os figos
atraem. O sabiá pulador. O sabiazinho imperturbado. Sabiá dos pés
de chumbo. Os sanhaços lampejam um entrepossível azul, sacam-se
oblíquos do espaço, sempre novos, sempre laivos. O gaturamo é o
antes, é seu reflexo sem espelhos, minúscula imensidão, é:
minuciosamente indescritível. O sabiá, só. Ou algum guaxe, brusco,
que de mais fora se trouxe. Diz-se tlique — e dá-se um se dissipar
de voos. Tão enfins, punhado. E mesmo os que vêm a outro esmo, que
não o de frugivorar. O tico-tico, no saltitanteio, a safar-se de
surpresa em surpresa, tico-te-tico no levitar preciso. Ou uma
garricha, a corruir, a chilra silvestriz das hortas, de traseirinho
arrebitado, que se espevita sobre a cerca, e camba — apontada,
iminentíssima. De âmago: as rolas. No entre mil, porém, este par
valeria diferente, vê-se de outra espécie — de rara
oscilabilidade e silfidez. Quê? Qual? Sei, num certo sonho, um deles
já acudiu por “o apavoradinho”, ave Maria! e há quem
lhes dê o apodo de Mariquinha Tece-Seda. São os que sim sós.
Podem se imiscuir com o silêncio. O ao alto. A alma arbórea. A
graça sem pausas. Amavio. São mais que existe o sol, mais a mim, de
outrures. Aqui entramos dentro da amizade.
Pois,
plumas.
Estes
têm linguagem entre si, sua aviação singulariza-se. Segue-se-lhes
no meneio um intentar, e gerir, o muito modo, a atenção concêntrica
— e um jeito proposituído, negocioso, de como demoram o lugar e
rabiscam os momentos, mas virando sempre a um ponto, escaninho, no
engalhe da árvore, sob sombra. Súbitos, sus, aos lanços, como que
operam e traçam. Terão seus porfins: o porfim. Nidificam! Aqui, no
avisado, preferiram, para sua ninhança, no desfrequentado. A manhã
se trança de perfumes e o orvalho é um pintalgamento lúcido. O
ramo a enfolhar não se conclui, nem tem a quem acariciar. O tempo
não voa. Todo galhozinho é uma ponte. Ao que eles dois se aplicam,
em suave açodo. Tudo é sério demais, como num brinquedo. Sem suor,
às ruflas, mourejam, cumprem rotina obstinaz. Um passarinho, que faz
seu ninho, tem mãos a medir?
Ambos
e a alvo ao em ar, afã, e o leviano com que pousam, a amimar o chão
— o chãozinho. Como corrivoam, às múltiplas mímicas cabecinhas,
a acatitar-se, asas de vestir, revestir. Têm o ninho em início.
Aonde vão, acham ainda o orvalho. Arre que catam a palha mínima,
fio, cerda ou cílio, xepam. O mundo é cheio do que se precisa, em
migalhificências: felpas, filamentos, flóculos. À vez de
esmiuçar-se, nada seja nhufa ou nica: por uma ninharia, os pássaros
passam, em desazo. Nem nem comem? O tempo parco, o mundo movediço e
mágico. Seu dever é ver, extrair, extricar, içar, levar a lar.
Sim, aqui os dois, nidulantes, não cessam, os filhos da delicadeza.
Outros só estão a picoritar na figueira, meliantes, conforme ferem
os figos, de vizbico. Conquanto, do ao-fundo, os mais outros, segundo
as matérias: o incoativo, o repetitivo, o pio puro; tié, tietê,
teiteí. O pomar é uma pequena área florestária. Bem-te-vi —
monotonia aguda — seu grito de artifício. O sabiá reza: —
Senhora... Senhora... — a penas um rebate de saudade. Sempre
mais longe, mais fundo, mais grave. Aonde os anjos, que ainda à
terra vêm, agora. Vigem disfarçados?
O
ninho — que erguem — é néxil, pléxil, difícil. Já de segredo
o começaram: com um bicadinho de barro, a lama mais doce, a mais
terna. De barro, dos lados, à vária vez, ajuntam outros arrebiques.
À muita fábrica, que se forma de ticos, estilhas, gravetos, em
curtas proporções; e argueiros, crinas, cabelos, fibrilas de
musgos, e hábeis ciscos, discernidas lãs, painas — por estofo.
Com o travar, urdir, feltrar, enlaçar, entear, empastar, de sua
simples saliva canora, e unir, com argúcia e gume, com — um atilho
de amor, suas todas artes. Após, ao fim, na afofagem, forrá-lo com
a própria única e algodoída penugem — do peito, a que é mais
quente do coração. O ninho — que querem — é entre asas e
altura. Como o pássaro voa trans abismos. A mais, num esperanceio: o
grácil, o sutil, o pênsil.
Se
pois, que, na estreitez do que armam, vê-se, o trabalho se parte.
Ele provê os materiais; ela afadigada avia-os, a construtora dita,
aos capítulos. Ele traz, ela faz; ela o manda. Ele, cabecinha
principal? A irrequietá-la, certo já não avoaça, assíduo. Às
vezes, porém, para, num fino de ramo se suspende, volatim prebixim —
com lequebros e cochilos eventuais: belpraz-se. A mirá-la de reolho,
com um trejeitar, ou repausado — tiroliro — biquiabertinho. Ela o
insta, o afervoriza, increpa-o. Aí ele vivo se eclipsa. E volta à
lida, subsequente ativo, ágil djim, finge-se deparador, vira, vira,
bicoca e corre de lado: — Aqui... aqui... aqui... Só que o
a seguir-se é que de novo se esquece, empinado se ergue,
preparadinho para cantar; que todo tentar de melodia já é um ensaio
do indefinido. O que sai é um tritil, pipilo pífio: um piapo — e
a alegria a mais, que ele assim se adjudica.
Ela
é intrínseca. Ela é muito amanhã, seu em breve ser, mãe até na
raiz das penas. Toda mãe se desorbita. O que urge, urge-a, cativa de
fadária servidão — um dom. O que teme é ovo anteposto. E ainda
não está pronto o ninho, amorável. Donde o diligir, de afinco, de
rápido coração, no mais dar. Sumiu-se a gentil trapeirinha em
gandaia. Repousa-e-voa, sofridulante, o físico aflito, vã, vã. Já
ali a erguitar um til de capim, que é um quindim, que é um avo.
Recuida-o agora, em enlevo de cobiça, com sem biquinho tecelão. E
engendra. Com pouco, estará na poesia: um pós um — o-o-o — no
fofo côncavo, para o choco — com o carinho de um colecionador;
prolonga um problema.
Está
perfeito o nidifício, no feliz findar. Os dois vão avir-se. Ele se
sobe a andares altos, plenivoa, desce em festa. Ela se faz a
femeazinha, instantânea tanagrinha. São casal. Sem tris, se
achegam. Simetrizam. Os outros, os trêfegos aos figos, se avistam
acolá, na figogueio, de figuifo. Sem reticenciar, entoa ele então
um tema, em sua flauta silbisbil. Deram-lhe outro canto? Sai do mais
límpido laringe, eóa siringe, e é um alarir, um eloquir, um
ironir, um alegrir-se — um cachinar com toda a razão.
Se
sim, quando. Se às vezes, simplesmente. Onde um lugar — os quietos
curtos horizontes, o tempo um augúrio ininterrupto — que merece
demorada. A inteira alma. As várias árvores. O céu — ficção
concreta. Um par de pequeninos, edificantes. O tremer de galho que um
mínimo corpo deixa. E o nomezinho de Deus, no bico dos pássaros.
Guimarães
Rosa, in Ave, palavra
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