domingo, 11 de junho de 2017

Um sujeito monstruosamente esperto (trecho)

A pista de dança estava apinhada. Luzes coloridas relampejavam contra espelhos de parede. Tiras de papel crepom pendiam e ondulavam em laços retorcidos de viga em viga. Era o tipo comum de salão em que o ingresso era grátis e você pagava dez centavos por dança e a pista se esvaziava depois de cada número. Uma cerca de vime com sessenta centímetros de altura circundava o piso de mármore. Marinheiros, estivadores e suas mulheres, operários e suas esposas, e turistas ricos, todos se esforçavam na pista. Cumprimentamos alguns amigos e abrimos caminho até a cerca, onde assistíamos à passagem ruidosa dos dançarinos, especialmente as mulheres. A orquestra ainda atacava “Tiger Rag”. Espasmodicamente, um sujeito gritava “Yippiiiii! Uahuuu!”.
Eddie me cutucou: — Um californiano nativo que veio do Texas.
Eu me sentia tenso e com a boca seca; salões de dança eram lugares onde as mulheres conseguiam ser mais suaves. Tentei pensar num adjetivo descritivo adequado. Em vez disso, meu pensamento me forneceu uma sensação de inutilidade para adjetivos descritivos e comecei a desejar ter ficado em casa e escrito minhas mil palavras. Uma garota de cetim preto, ostentando quadris lustrosos, corria pelo salão puxando seu parceiro suarento atrás de si. Eu a seguia com o olhar e me perguntava como ela ganhava a vida e se lia Nietzsche. Com tais quadris, especulei, certamente não tinha tido filhos; mas eu apostava que não era virgem.
Vamos — disse Eddie. — Vamos andando.
Os machos desacompanhados eram numerosos. Abrimos caminho no meio deles até um pequeno corredor que circundava a pista e, caminhando por essa passagem, observamos os espectadores sentados à nossa direita em busca de mulheres desacompanhadas.
Rapaz — disse Eddie.
À nossa frente havia duas garotas, solitárias, e uma era atraente, com cabelos ruivo-acastanhados; a outra era feia. Sorriram convidativamente quando nos aproximamos. Eddie me passou à frente e ficou com a mais bonita.
Te vejo depois — disse. Eddie era rápido e um excelente dançarino.
Segui em frente. A garota feia me observou passar. Três metros adiante eu me virei. Nossos olhares se chocaram.
Oh, Deus.
Segui em frente, mais rápido. Tentei tecer palavras explicando por que eu havia olhado para trás: “Havia um fascínio em sua feiura que, talvez, revertesse meus olhos em sua direção.” E achei a frase bem-feita, até, para o breve tempo em que foi composta.
Caminhei pelo corredor do outro lado, onde vi duas garotas sentadas, uma loura, outra morena. Inclinavam-se para a frente de modo que a cabeça de uma estava quase no colo da outra e ambas falavam sem respirar. Tinham cerca de vinte e cinco anos, provavelmente casadas, imaginei.
Ajeitei a gravata e caminhei até elas. Sentia muito bem minha baixa altura e minha pequenez, para ser sutil, e eu sabia disso, uma mera desvantagem fisiológica impossível de ignorar. As garotas me olharam por baixo das sobrancelhas, mal erguendo a cabeça. Seus maxilares, mascando chiclete, pipocavam como pistões.
Decidi convidar a loura, me chamei de babaca, e falei.
Posso ter esta dança?
A música era um foxtrote lento.
Elas pararam de mascar simultaneamente e se entreolharam. A loura examinou suas unhas. Eram muito compridas.
Nunca danço com estranhos — disse.
Falava com a amiga enquanto lixava as unhas sobre a coxa.
Vá lá, dance com ele, Elsie. Parece um bom sujeito.
Elsie apertou os lábios até fazer beicinho e sacudiu a cabeça lentamente.
Ahan — disse. Me deixou com raiva.
Quer dizer “Não, senhor”, não é?
Ergueu o olhar para mim.
Sim, é o que eu quero dizer. “Não, senhor.”
Fui embora.
Ei, você aí! — A loura gritou quando eu estava a três metros de distância.
Voltei até onde ela estava sentada ainda lixando as unhas.
Mudei de ideia. Suponho que você pode dançar esta comigo.
Por qual tipo de babaca ela me tomava?
É muito gentil da sua parte — falei —, e, como isso é um jogo de suposições, suponho que você pode ir para o inferno.
Ela mordeu os lábios, me olhou de soslaio, e ficou com um belo rubor. Tentei sorrir, mas foi difícil. Ao me afastar, ouvi a loura dizer à amiga: — Nunca fui tão insultada em toda minha vida.
Congratulei-me com minha réplica. Lembrei que Voltaire, Huneker e George Jean Nathan eram mestres do ofício e fiquei a imaginar como teriam lidado com ela. Talvez não tão estupidamente, mas por certo com palavras do mesmo efeito. Então me chamei de burro porque pouco tempo atrás eu andava por aí citando de cor trechos do American Credo, de Mencken.
A orquestra começou a tocar uma canção alemã muito bonita “Dois Corações em Compasso 3/4”. Fui até a pista observar os dançarinos valsarem com a música selecionada. Seria esplêndido, pensei, se eu pudesse cantar as palavras do tema, mas, já que desejava isso, seria melhor ir mais fundo e desejar conhecer a língua toda. Raciocinei assim. Disse a mim mesmo que eu admirava tudo teutônico, pela simples razão de que os homens que eu mais apreciava eram alemães. Imaginei o que a loura estaria dizendo. Pensei em Nietzsche, lembrando a mim mesmo que sequer sabia se pronunciava seu nome corretamente, embora o respeitasse tanto quanto meu próprio nome. Evoquei Zaratustra: “Amarga é a mais doce das mulheres”, e “Vais ao encontro de uma mulher? Não te esqueças do chicote.” Fiquei a pensar se Nietzsche escrevera palavras tão ácidas como chavões. Tinha de esquecer Nietzsche se queria ter uma noite decente. Disse a mim mesmo com vigor que aos trinta e três anos Nietzsche ainda me influenciaria. “Mas”, pensei, “suponha que Nietzsche saísse da pista e me dissesse: ‘Ei, você aí, rapaz, vá lá fora e estoure os miolos’.” Fiquei pensando como aquilo me magoaria. A garota de cetim preto deslizou por mim e me esqueci dele, e minha mente embarcou num solilóquio de amor a ela. Sherwood Anderson, lembrei, tinha escrito que muitas vezes ver uma mulher caminhar através de um assoalho era um espetáculo de pura beleza. Ele devia ter pensado numa mulher de cetim preto; devia ter significado algo um pouco além da marca da beleza, a mera qualidade estética.
A garota e seu parceiro circularam pela pista três vezes. Nem por um instante apartei meus olhos de sua cintura. A valsa terminou, ela desapareceu numa multidão na entrada e eu mal pude olhar para seu rosto. Se a visse de novo, vestindo um casaco, não a reconheceria. E, pensei, segundo a religião do meu batismo, que havia cometido um pecado mortal, e agora estava destinado ao inferno mais do que nunca. Amaldiçoei todos os padres.
John Fante, in A grande fome: Contos (1932-1959)

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