segunda-feira, 26 de junho de 2017

Um artista de Shanghai

Para May Zarif

Muita gente sonha em conhecer Paris, Roma, Barcelona, Londres, Cairo”, disse minha amiga. “Eu, desde criança, sonhava em conhecer Shanghai.”

Minha mãe falava muito de um artista chinês que encantou a cidade com seus desenhos e aquarelas. Ele morou uns anos em Manaus e ganhava a vida com sua arte de aquarelista. Perguntava a uma pessoa o nome de um parente morto, pedia que lhe contasse alguma coisa sobre o finado, depois pintava com aquarela manchas coloridas e dessas manchas surgia um rosto. O rosto do parente. Minha mãe dizia que esse chinês, além de ser um artista, era um bruxo. Por isso ficou conhecido como “O bruxo de Shanghai”.
Eu tinha nove anos quando vi o desenho do rosto da minha finada avó, uma aquarela do artista chinês. Minha mãe me mostrou fotografias dessa avó que não conheci, eu fiquei impressionada com a semelhança entre as fotos e a aquarela.
Quando eu ia completar treze anos, aconteceu uma tragédia. Minha mãe foi me apanhar na Escola Normal. Quando atravessávamos a praça São Sebastião, paramos no lugar onde o chinês trabalhava.
Ele ficava aqui, ao lado desse barco de bronze onde está escrito Ásia”, disse minha mãe.
Observei o monumento, o barco, imaginei o artista com seus pincéis, tintas, folhas brancas, e perguntei por onde ele andava.
Não sei”, ela disse. “Morou aqui nos anos 1950. Ainda estava em Manaus quando tu nasceste, mas um dia ele sumiu. Era um artista muito querido.”
Entramos em casa depois de meio-dia, minha mãe murmurou que não queria almoçar, estava indisposta e foi deitar na rede. Almocei com meu pai, conversamos sobre a Escola Normal e sobre um navio inglês que estava atracado no porto. Antes de fazer a sesta, meu pai perguntou à minha mãe se ela se sentia melhor. Ela não respondeu. Estava morta. Morreu deitada, dormindo.
Sim, uma coisa terrível… Quando me lembrava dela, recordava também do pintor de Shanghai, porque as últimas palavras que ouvi de minha mãe falavam do artista e do lugar onde costumava trabalhar. Aí passei anos com a ideia de visitar a China, ou melhor, Shanghai.
Meu pai dizia que isso era besteira, ou loucura. Não insisti, mas também não desisti de visitar Shanghai. Meu pai morreu muito velho, em 1996, quando eu já estudava mandarim com um chinês que trabalhava numa fábrica em Manaus. Quando meu professor envelheceu, eu já falava mandarim, mas não conhecia o dialeto falado na região de Shanghai. Há dois anos viajei à Ásia.
Shanghai, como tu sabes, é o maior porto do mundo, a cidade é enorme, mas essa metrópole tentacular não me intimidou. Visitei o museu de Belas-Artes, o Centro de Escultura de Shanghai, o maravilhoso Lu Xun; saía sozinha, sem intérprete: o nome e endereço do hotel bastavam. Mas fui com um guia até as ilhas Yangshan. Para quem conhece a China, o Ocidente é um diminutivo.
Dois dias antes de voltar para o Brasil, escrevi o nome do artista e perguntei ao guia se ele conhecia alguém com esse nome. Ele me levou a um bairro distante do centro, um bairro situado no coração de Puxi, a oeste do rio Huangpu. Paramos diante de um pequeno sobrado em estilo art déco, resquício da colonização francesa.
Esta é a casa do artista”, disse o guia. “Morreu em Shanghai, em 1978. Sei por que você se interessou por ele.”
Por quê?”
Porque ele morou nove anos na Amazônia.”
Entramos na casa. As paredes das salas estavam cobertas por desenhos e aquarelas de rios, igapós, furos, sementes, frutas, uma enorme variedade de plantas e árvores. E também aquarelas de horizontes, em que a floresta e o céu eram desenhados em vários momentos do dia. Não vi nenhum desenho de pessoas, nem de animais, peixes, insetos. Lembrei a aquarela do rosto da minha avó e pensei: ele desenhava o rosto dos mortos para sobreviver. Era um artista apaixonado pela natureza.
Perguntei ao guia quanto tempo o artista tinha morado naquela casa.
Quase vinte anos”, respondeu. “Mas ele só ocupava um quartinho do andar superior. Quando ele morreu, os outros moradores tiveram que sair daqui. A prefeitura fez esse pequeno museu.”
Quis visitar o quarto. Era de fato pequeno, mal cabiam uma cama, uma cadeira e uma mesinha. Reparei nos pincéis de vários tamanhos e formas, nos delicados estojos de tintas, na roupa dobrada, arrumada sobre o assento da cadeira. Um quartinho modesto, ou mesmo pobre, que contrastava com a riqueza e o luxo que eu tinha visto em Pudong. Mas não senti pena do artista. Por que sentiria pena de um artista talentoso e corajoso?
Quando observei a mesinha, vi uma fotografia ao lado de um caderno. Na capa, estava escrito em mandarim: ‘Passagem por Manaus’. Depois, quando observei a foto, vi o artista ainda jovem abraçado a uma moça. Reconheci o rosto de minha mãe. Não sei se a foto era anterior ou posterior ao meu nascimento. Sei que minha mãe parecia feliz. O sorriso no rosto dela foi a melhor lembrança de Shanghai.
Milton Hatoum, in Um solitário à espreita

Nenhum comentário:

Postar um comentário