terça-feira, 27 de junho de 2017

Revolto de arroubamentos

Recompensado Nando tinha sido no dia seguinte, quando entrava no claustro revestido de azulejos azuis da vida de Santa Teresa. Só homens são admitidos à história azul da vamp de Deus nascida quando seu crucificado amante desembarcava das naus no Brasil. Magra menina em cujos negros olhos armava-se a fogueira futura — mi sagacidad qualquier cosa mala era mucha — e de repente monja aberta em lírio definitivo. Maçã macilenta do segundo paraíso, lírio com que Deus filho se apresentará dizendo há esperança, Pai, se a esta alvura alguns conseguem chegar. Mira esta monja branca em açucena passada a limpo. Teresa boba de Deus no leito de linho místico revolto de arroubamentos. Perdão se são as mesmas as palavras para todos os amores. Mi honra esya tuya e la tuya mia.
Nando buscou no automatismo de sempre a cabeça de Teresa no azulejo em que recebe a inspiração de fundar a Ordem das Descalças, o azulejo do fundo, à direita do esguicho central do repuxo se observado em dia sem vento do limiar da porta da Sacristia. Com espanto, apenas consciente no interior de sua meditação, via um ladrilho de sol em lugar do ladrilho azul. Depois, com a proximidade maior, avistou o azulejo predileto mas com a mancha amarela aos pés, como se Teresa flutuasse sobre a nuvem de ouro dos cabelos de Francisca. Era a recompensa ao samaritano.
Que é isso, padre Nando? Tão distraído — disse Francisca.
Francisca, em geral, quando se encontravam, começava ainda por chamá-lo “padre”. Depois esquecia.
É que...
Já sei. Está espantado de ver uma mulher no claustro.
Francisca brandiu um papel que tinha por baixo da tábua de desenho com o grande pregador de metal de firmar as folhas.
D. Anselmo me deu um salvo-conduto para desenhar os azulejos de Santa Teresa.
Ah, muito bem — disse Nando —, uma invasão legalizada.
E pacífica. De mais a mais Teresa de Ávila era uma mulher. Por que há de ficar sequestrada entre homens? Ou entre santos, se fosse o caso.
Francisca tinha falado com expressão perfeitamente séria mas Nando já notara que na radiosa pureza dos seus olhos verdes se acendiam às vezes uns fogos minúsculos.
Mas o que eu queria mesmo fazer hoje aqui — disse Francisca — é lhe agradecer o abrigo que deu a Levindo.
Como vai ele? — disse Nando. — Deve ter perdido bastante sangue.
Está perfeito outra vez. Nem fez mais nenhum curativo, depois do seu. E não me espanta nada que ele esteja metido em outra “invasão” de engenho.
Anda muito afoito o Levindo — disse Nando. — Veja o caso de outro dia. O tiro pegou na mão mas podia ter causado ferimento grave.
Eu sei, eu sei — disse Francisca — e não pense que não me aflijo o tempo todo com o que pode acontecer a ele. Mas Levindo acaba por convencer a gente de que não morre antes de fazer uma revolução. Diz que ninguém morre no meio de um trabalho importante.
Nando olhou os dois croquis da folha em que Francisca trabalhava. Na parte superior, longos pés descalços da carmelita pisando lajes frias. Embaixo, o esboço de Teresa alanceada pelo anjo, no auge do arroubamento, olhos velados de enlevo, o torvelinho do êxtase misturando hábito, capuz e cara da monja.
Vai documentar as obras de arte do mosteiro? — disse Nando.
Principalmente estes azulejos. É o que existe de mais ameaçado aqui.
Ameaçado? — disse Nando. — E nós que nos gabamos de cuidar tão bem deste forro do nosso claustro.
O forro do claustro de vossas reverendíssimas ainda existe porque os ladrilhos foram muito bem colados à parede. Vossas reverendíssimas adoram Teresa mas não se dão ao trabalho de preservá-la. Há uma carência de Martas nesta casa.
Senhor — riu Nando —, que ataque a nós todos.
Sabe que faltam quinze azulejos? — disse Francisca.
Não é possível — disse Nando.
Pois então conte as falhas na parede.
Nando sempre perguntava a si mesmo, diante de uma mulher moça e bonita como Francisca, se era pura também. Francisca era. Tinha de ser. Era das que Nando contemplava sentindo-se seguro em sua virtude, defendido. O próprio Levindo, tão alegre e violento na sua pregação trotskista, anarquista, comunista ou lá o que fosse, tratava Francisca com doce ternura e quase um certo alheamento. Francisca estava frequentemente sozinha, como agora no mosteiro. E esse procedimento que Nando estranharia se outra fosse a noiva, aceitava como intuição perfeita do noivo. Mesmo no seio de uma montanha o cristal é infenso à terra. Mesmo imersa no mundo Francisca era invulnerável a ele. Pertencia à raça das mulheres amigas da Igreja, inspiração de poetas. Nem todos podem ir diretamente a Deus, escalando o Monte Carmelo em mãos como garras lívidas e joelhos sangrentos, no rastro apaixonado de Don Juan de la Cruz aliás San Juan Tenório. Irmãos leigos dos santos, os poetas do amor indicam trilhas menos escarpadas e semeadas de lagoas que são íris verdes.
Antonio Callado, in Quarup

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