Não
Napoleão, mas um senhor, claro e bem vestido, com quem conversei,
uma tarde, entre 1934 e 1935, no Itamaraty, no Serviço de
Passaportes.
Lembro-me
apagadamente das feições, os olhos; deslembro o nome, de que não
tomei nota. Ele se portava muito despreconcebidamente.
Era
brasileiro, paulista, conforme a caderneta verde, que trazia para ser
posta em ordem. E morava em Santa Helena.
—
Cidade no interior de São Paulo?
— Não.
Santa Helena, a ilha...
— !...A
de Bonaparte?!
— Yes,
sim.
Selos
e carimbos o comprovavam. Mas perdi um momento me acostumando ao fato
de haver alguém, assim ao meu alcance, morador em Santa Helena. E,
por pim e pam, um brasileiro.
Mas
mesmo, mesmo brasileiro, com a nossa fala desembrulhada, nosso
meio-tempo cordial, nosso jeito raso, sem contragarra estranha.
Aceitou
meu pasmo e disse-me a história de como tinha ido parar na longínqua
grimpa terráquea — metade emergente de uma cratera, roída de
vento e vaga, poleiro de basalto para pouso dos albatrozes —
sozinha no íntimo do Atlântico solitário. Enfim, também, quem
descobriu primeiro, há muito tempo, aquela paragem, foi um
brasileiro antecipado, um d’ “os fortes Portugueses, que
navegam”...
Contou-me:
havia alguns anos, passara por São Paulo um americano, astrônomo e
geólogo, que precisou de alguém que o acompanhasse em suas
excursões; com ele se empregara, e percorreram boa parte do Brasil,
levando cálculos, telescópio portátil, amostras de rochas,
instrumentos. Depois de meses, o americano convidou-o a darem uma
chegada até à África.
— Eu
era solteiro, com saúde...
Começaram
por Santa Helena. Mas, logo lá, o paulista namorou uma moça,
santa-helenesa, descendida de ingleses. Casaram-se. (O americano
prosseguira só, para a Costa do Marfim ou Costa do Ouro.)
— Tive
licença de ficar morando... Destino...
Meu
auge, porém, foi ele jurar que era o único forasteiro então
habitante da ilha. E com frêmito cívico ouvi que estava rico, isto
é, que fundara para si uma fortuna muito acima da média, entre os
insulares. Era um exemplo simples — explicou, textual:
— Nós,
aqui, somos moles, engordamos os estrangeiros. Lá na Ilha, eu é que
era o estrangeiro...
Segundo
acrescentou, o comércio santa-helenino se fazia sob praxe de
monopólios: um negociante dono exclusivo de vender objetos de
vestuário, outro com privilégio para os gêneros e bebidas, e assim
vindo o resto. Pois o nosso patrício pronto se arranjara com uma das
concessões mais vantajosas, e não tomou tempo para amealhar suas
cifras esterlinas. Era o Brasil, éramos todos nós, ganhando.
Pequeno e gostoso imperialismo!
Mas,
construtivo. Porque também já aconteceu, no outro século, que uma
horda brasileira de cupins brancos, viajando vingativamente num navio
negreiro, desembarcou e enxameou lá, devorando a biblioteca pública
e a maior parte do madeiramento das casas e edifícios da capital, de
modo que quase toda Jamestown teve de ser recomeçada — a pau-teque
e cipreste, essências que a térmita respeita...
Em
seguida, o herói, que agora voltara a São Paulo e ao Rio, a passeio
e saudade, comunicou-me que também entrara numa empresa, exportadora
de lagostas.
— O
que tem mais, na Ilha, são os faisões e as lagostas, que dão o
mantimento dos pobres...
Os
faisões, virados selvagens, eram praga. E as lagostas,
grandiosíssimas, pululavam no mar de ao redor. Ainda mal, para pena
dele e minha, que elas seriam quase todas mandadas para a Argentina,
e nenhuma para o Brasil, que não era mercado compensador. E a
empresa andava adaptando embarcações especiais, com grandes tanques
de água salgada, para levarem vivos até Buenos Aires os reais
crustáceos. Precisavam de ser barcos a vela, porque as lagostas não
suportariam cruzeiro rápido...
Coisas
mais me disse, pois conversamos bastante, e eu achei que devia
repartir com o público minha informação. Tirado de alguma dúvida,
ele concordou em dar entrevista. Estava hospedado num hotel do Largo
de São Francisco, ou adjacências. Assim, mal se despediu, telefonei
para a redação de um jornal, e resumi o caso, encarecendo que o
procurassem. Agradeceram-me, muito. Por dias, esperei ler a
reportagem. Como, porém, nada saísse, perdi o meu porfio — isto
é, nunca mais nada se soube a respeito do brasileiro de Santa
Helena.
Guimarães
Rosa, in Ave, palavra
Esse senhor brasileiro q morava em Santa Helena era o meu avo! Muito orgulho de tudo que fez e conseguiu! Um grande empreendedor e um pai e avo exemplar! Saudades de vc vovo!
ResponderExcluirEste Sr chamava Oduvaldo Bueno Netto casado com Winifred Ethel meus avôs ele depois de muitas aventuras pelo mundo voltou ao Brasil e foi ser pioneiro na construção de Maringa PR e formou uma grande família com nove filhos muitos netos e bisnetos
ResponderExcluirUm exemplo de coragem empreenderíamos e defensor dos bons costumes