Lagartixa? Ui!
Aquilo era nojo, o menino sabia. Agora
era capaz de vê-lo de perto, via-o por trás das palavras, de cada
uma das duas únicas palavras que a moça disse: o nojo estava
estampado em seu rosto, na sua perturbadora cara de espanto, no
tremelicar de seus braços arrepiados, como se esta estranha moça
tivesse num repente pressentido a própria morte. Nojo de uma coisa
de que ninguém devia ter nojo, o menino pensou, encolhendo-se ainda
mais debaixo da coberta encardida que ele puxou sobre as pernas. Ele
pelo menos não tinha. Talvez já soubesse também (ou suspeitasse) a
pior das verdades: era dele que a moça estava com nojo e não apenas
daquilo que ele disse, quando falou em “minha irmãzinha
lagartixa”. Havia dito isso com a mesma e tranquila certeza com que
falara antes em “meu paizinho Santo Antônio”, apontando para o
santo no nicho à sua frente, seu velho companheiro de todos os dias,
como as lagartixas. Este santo era um presente de um tio que tinha
cara de santo, isto é, foi feito pelas mãos abençoadas de um
marceneiro que foi capaz de transformar um toco de madeira num santo
verdadeiro — e todos viram o dia em que o padre lhe deu validade de
santo, naquele dia em que ele veio à sua casa para benzê-lo.
Quieto estava, quieto continuou. Ia fazer
o que podia: revirar os olhos (duas jabuticabas idiotas que giravam
descompassadas de um canto a outro sem a menor consciência de si
mesmas), para novamente voltar a olhar para as telhas. Voltaria a
conversar com suas amiguinhas. E lá estavam elas, estas preguiçosas,
cochilando entre as ripas, alheias a tudo. Com elas, sim, ele podia
contar. Iria dizer-lhes que não tinha culpa se a moça não as
estimava. Mas quando o sangue que se agitava no rosto da moça
voltasse a se acalmar, ele iria ter que explicar melhor as coisas,
para que a sua inesperada visita não se vá pensando bobagem. As
pessoas das cidades não são como as daqui. Nada entendem de
lagartixa.
Lá fora havia calma, nenhum sinal de
gente. Ele sabia o que isto significava: todos os homens já tinham
ido para a roça. Era um dia claro, completamente azul. Nos dias
assim sua mãe abria a janela e ele podia ver a rua. Prostrado a vida
inteira num estrado, o menino se alegrou muito com a chegada da moça
e dos dois rapazes. Não sabia o que queriam, mas isso não
importava. Estes três forasteiros pareciam enviados de Deus para lhe
fazer companhia. Ia ter muito o que contar quando sua mãe voltasse.
E foi assim que os recebeu: feliz. Feliz,
feliz.
Eram estranhos até na maneira de chegar.
Primeiro amontoaram-se na janela, falando entre si, numa língua
incompreensível. Depois perguntaram-lhe qualquer coisa, que não
compreendeu direito. Pelas falas via-se logo que não era gente
destes lados. Mas apesar disso iriam se entender, como ficaria
sabendo daí a pouco.
— Cheguem à frente — disse o menino
e não precisou dizer mais nada. A porta estava encostada, como
sempre.
Visita era coisa boa, viesse de onde
viesse, fossem parentes ou não. Sempre experimentava um prazer
imenso quando aparecia alguma. O difícil era saber se o que lhe
agradava era apenas a companhia, a novidade da presença de alguém —
menino ou gente grande, tanto fazia —, alguém disposto a
dedicar-lhe um pouco de tempo, por menor que fosse. Os que chegavam
traziam-lhe o mundo de fora, o desconhecido e largo mundo a que não
pertencia. Por isso sugava cada palavra que lhe era dita, com a mesma
fé cega com que engolia a hóstia que o padre metia em sua boca de
ano em ano. Foi assim que ele aprendeu, desde muito pequeno, a
conversar com os outros: prestando muita atenção nas palavras que
ouvia, guardando-as para repeti-las mais tarde, como se ele próprio
fosse um paiol muito fundo capaz de armazenar toda a sabedoria da
vida que os outros lhe passavam, naturalmente. Mas talvez tivesse
nisso também o prazer de ver as pessoas sofrerem por sua causa (ou
fingir que sofriam), sempre aqueles olhares caídos para o chão, o
não dito e o por dizer escritos em cada cara,
que-pena-que-eu-tenho-desse-menino, tadinho. Tadinho! E aí (quem
sabe nem o soubesse?) estava a sua vingança, sua espécie particular
de crueldade: vê-las sofrer enchia-lhe a boca de saliva.
Estes três forasteiros eram diferentes.
Olhavam-no de frente, sem cerimônia. Faziam-lhe muitas perguntas, às
vezes dando a impressão de que queriam embaraçá-lo. Tiravam muitos
retratos. Essa parte foi a que mais gostou: aqueles cliques-cliques
rápidos e até engraçados, parecidos com a fala dos grilos. Como
gostaria de ter um brinquedo desses. Só não falou isso porque se
lembrou de uma coisa que sua mãe costumava dizer. Nunca se deve
pedir nada a ninguém. Espere que lhe ofereçam.
Mais tarde ele diria que a moça era
parecida com uma ovelha, por causa da cor de seus cabelos lanzudos. E
que um dos rapazes era um sujeito amarelo, de olho rasgado, e que
gente assim nunca tinha visto antes. E que o outro lembrava um copo
de leite, de tão branco. Foi o que sua mãe contou para o delegado,
que contou na venda, de noite, quando o alvoroço já estava formado.
O delegado especulava, precisava registrar o caso. Uns disseram que
aquele menino vivia sonhando acordado. Ninguém viu forasteiro algum.
Outros estiveram de acordo quanto a um ponto: os tempos estavam
mudando. Até paulista já aparecia por aqui. Mas não faltou quem
dissesse ter visto, com seus próprios olhos, os três chegarem e
sumirem dentro de uma bola esquisita, que mais parecia um cavalo de
fogo, e que só podia ser o tal de disco voador.
— Que disco voador, que nada. Você
está é bestando.
— Esse tal de disco voador é coisa do
diabo, homem.
— Quem sabe ele não está certo? Vai
ver é o fim do mundo que está chegando. Ele viu uma bola de fogo,
não viu?
— Com estes olhos que a terra há de
comer — garantia o homem em quem não se estava acreditando.
— Vocês estão é bestando. Todo mundo
bestando aí como uns tontos — cortou o que não ia nessa conversa
de disco voador. — Esses forasteiros não passam de uns moleques
sem-vergonha, uns vidas-tortas que não têm o que fazer. Se pego
eles boto tudo num cabo de uma enxada, pra eles verem o que é bom.
— Vamos ou não vamos pegar esses
cachorros, delegado? — O primeiro adepto do que falara antes também
espumava, seu ódio também não era pequeno. Ele exigia uma ação
qualquer, uma medida prática, pedia o que muitos queriam: a caça
urgente aos dois rapazes e à moça, que mereciam o mesmo castigo
dedicado aos ladrões de galinha.
Calado e inquieto, o delegado ouvia a
todos. Parecia escutar até os mais maldizentes resmungos, o
disse-me-disse cochichado, a desconfiança — essa surrada
desconfiança local que tem olho torto e sempre se denuncia: onde
estavam ele e os dois soldados que não viam nada? Por que deixaram a
rua escancarada, como um curral sem dono, justamente na hora em que
todos estavam na roça, trabalhando? Jogavam damas na cadeira, damas
ou baralho, qualquer coisa assim — era só para isso que serviam
essas autoridades?
— Já não adianta — a voz do
delegado parecia convencida da sua própria derrota, uma derrota que
estava mais do que clara aos olhos dos outros. Uma voz de quem
implorava: Tenham dó de mim. Que posso fazer? Mas que em vez disso,
disse: — A estas horas eles estão bem longe. Já pegaram o asfalto
há muito tempo. Depois (nesse instante olhou com firmeza para os
homens à sua frente, como se os chamasse à responsabilidade),
depois, como é que eu vou saber quem são eles? Ninguém anotou a
chapa do carro, ninguém viu esses forasteiros.
Ninguém era maneira de dizer. Ou melhor:
de dar o caso por encerrado. Porque o menino tinha as provas, os
dados reais e indiscutíveis que confirmavam a existência deles.
Bastava que se acreditasse no seu relato, nos tintins por tintins que
não se cansava de repetir. Agora sua casa se enchia. Nunca imaginou
que pudesse ser tão visitado num mesmo e único dia. Era uma festa.
E eis como tudo aconteceu:
A moça entrou na frente; era a mais
assanhada. Disse que estava com sede. O menino pensou: eles vieram
aqui porque querem água. E mamãe sai logo numa hora dessas. Apontou
lá para dentro, indicando a cozinha, no fundo do corredor. Lá havia
um pote, que devia estar cheio. A caneca estava por perto. Era só
procurar. Não deu, porém, maiores explicações sobre o fato de não
poder sair do seu estrado para servir à moça. Disse apenas:
— Estou doente. — Quase completa:
Estou doente desde sempre. Nasci assim. Pelo menos é o que me dizem.
Como papai quando tomava umas cachaças e reclamava lá do quarto,
pensando que eu não estava ouvindo: “E eu que precisava tanto ter
um filho com pernas para andar e braços para o cabo da enxada.”
Mamãe não gostava: “Homem, não diga uma coisa dessas. Olha o
castigo de Deus.” Eu era bem pequeno quando papai morreu. Será que
foi castigo?
Um dos rapazes começou tirando retrato
do santo no nicho. O outro fotografava o menino. Ele perguntou:
— O que é isso?
— Máquina fotográfica.
— E o que é isso?
— Fotografia... retrato.
— Ah, bom — retrato ele sabia o que
era. Já tinham lhe contado. A cara da gente num papel, como um
espelho. A gente olha e se vê.
Foi então que a moça voltou. Disse uma
coisa para os dois, que acharam muita graça. O menino não entendeu
a razão das risadas. O que ela disse:
— Isso aqui é tão primitivo.
O menino ficou olhando para os três, sem
saber o que dizer. Então eles pararam de rir e começaram a fazer
perguntas:
— Você fica sempre assim... sozinho?
— É o jeito — ele disse, mas sem
amargura. Encantado como estava, nem sequer prestava muito atenção
no que dizia, nem no que lhe era perguntado.
— É o jeito?
— Sim. Mamãe está trabalhando. Quando
der meio-dia, ela vem para me dar comida, depois volta.
— Ela vem exatamente ao meio-dia? — o
que fez esta pergunta olhou no relógio. Disse para os outros: — Já
são onze horas. Temos pouco tempo.
— Mais ou menos — informou o menino.
— Quando o sol estiver a pino.
— Calma — falou a moça para o rapaz
que disse as horas. — Dá tempo. — E, para o menino: — Você
não tem medo de ficar aqui sozinho? Não tem medo de ladrão?
— Ladrão? Aqui não tem ladrão.
— Porque não tem o que se roubar, não
é?
— Eu acho que é.
A moça quis saber onde a mãe dele
estava trabalhando. O menino disse:
— Na roça. Está plantando feijão. —
E acrescentou: — Mas ela é rezadeira.
Então a moça disse:
— O que é isso?
O menino sorriu. Agora, sim, ele estava
verdadeiramente excitado. Tanto que lambia os beiços e esfregava uma
mão na outra, apertava uma mão com a outra, estalava os dedos.
Então havia uma coisa que essa moça não sabia? Então ele agora ia
poder dar uma lição para estes sabidos? Ia. Nenhum deles sabia o
que era uma rezadeira. Faziam confusão, falavam em gente que vive
rezando.
— Podemos dizer — o menino explicava
— que gente que vive rezando é gente rezadeira. Mas uma rezadeira
é outra coisa. Se mamãe chegasse logo para dar um exemplo…
Antônio Torres, in Meninos, eu
conto
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