Considerando-se
que oito horas de sono é o ideal para uma pessoa, quase oito horas
de sono deve ser quase o ideal. É lógico. Então, se eu conseguir
dormir até a meia-noite e acordar amanhã às sete e vinte, está
ótimo. Ou quase ótimo. Eu vou acordar feliz, bem disposta,
extremamente capaz, praticamente recuperada. Se eu dormir até a
meia-noite. Ainda tenho cinco minutos. Cinco minutos é tempo de
sobra pra uma pessoa pegar no sono, quer ver? Vou pegar no sono em
cinco minutos. Boa noite. Estou quase dormindo. Quase. Dormi. Não
dormi? Acho que não. Mas vou dormir agora. Senão os pensamentos
começam a entrar na minha cabeça e, aí, minha filha, nunca mais.
Um pensamento puxa outro, que puxa outro, que puxa outro, parece até
que pensamento tem corda. O negócio é não deixar entrar o
primeiro, tá vendo? Foi só começar a pensar em não pensar e
quando eu vi já estava pensando em pensamento com corda. E de corda
pra acorda é um pulo. E é melhor eu não pensar em acordar, senão
eu não consigo dormir. E eu preciso estar inteira amanhã. Ou vai
ser uma tragédia. Calma, também não é assim. Eu ainda tenho cinco
minutos pra pegar no sono. Se bem que agora já não faltam mais
cinco, quantos minutos se passaram até agora? Esquece e dorme. Boa
noite. Dormi. Não dormi? Se eu tivesse dormido não estaria pensando
se dormi ou não dormi. Estaria dormindo. Isso prova que eu não
dormi ainda. Amanhã vou acordar um lixo. E eu tenho um dia
dificílimo pela frente, com uma lista enorme de coisas pra resolver:
vinte minutos de meditação ao acordar, ginástica às oito, reunião
às dez em ponto, consertar o carburador do carro, desmarcar o
dentista, comprar tinta pra impressora, ligar pro Geraldo... esquece
o Geraldo e dorme. Você já trancou a porta, já fechou o gás, já
tomou seu banho, já foi na cozinha, já bebeu seu leitinho quente,
já pensou em quantas calorias tem um copo de leite quente, você já
se preocupou demais por hoje. Você precisa dormir. Isso. Eu preciso
dormir. Então, boa noite. Tem certeza de que eu tranquei a porta?
Tranquei, sim. Tenho certeza. Fechou o gás? Claro. Não lembra? Logo
depois do banho. Fechei o gás, fui na cozinha, bebi meu leitinho
quente, quantas calorias tem um copo de leite? Eu não devia ter
botado açúcar pra depois não ficar culpada. Depois eu fico
culpada. Agora eu vou dormir. Já me preocupei demais por hoje e por
amanhã... Não, eu não vou pensar no que tenho que fazer amanhã.
Tenho um dia dificílimo pela frente, com uma lista de coisas pra
resolver, e se eu não dormir até meia-noite e meia, uma hora, vou
terminar pulando a meditação. É uma opção. Faço ginástica às
oito e de lá vou direto pra reunião, às dez em ponto, no centro da
cidade, vou de carro ou vou de táxi? Amanhã você resolve isso.
Certo. Eu resolvo isso amanhã. Boa noite. Mas eu já tenho coisa
demais pra resolver amanhã, assim não vai dar tempo. Será que não
é melhor ir pro centro da cidade de táxi pra poder ir resolvendo
outras coisas no caminho? Está resolvido. Amanhã eu resolvo o
resto. Boa noite. Se eu conseguir dormir até uma e meia e acordar às
nove, já está bom. Pulo a meditação, falto à ginástica, pego um
táxi pro centro da cidade e aí só falta resolver o resto da vida.
Mas eu tenho o dia inteiro pra resolver tudo. Ligar pro Geraldo,
terminar o relatório, passar no supermercado, chamar o homem da
televisão, esquece o homem da televisão e dorme. Já deve ser bem
mais de uma. Olho o relógio ou não olho? Se eu olhar e for muito
tarde, vou ficar nervosa. Mas, se eu não olhar, vou ficar imaginando
que é mais tarde do que é na verdade e fico mais nervosa ainda.
Esquece o relógio e dorme. Boa noite. Eu não vou pensar em amanhã,
não vou pensar em hoje, não vou pensar nas horas, não vou pensar
em nada. Nadinha. Um nada absoluto. Pensar em nada é pensar em
alguma coisa? Olha aí eu pensando de novo. É por isso que eu não
durmo. Durmo sim. Quer ver? Vou contar carneirinhos. Um carneiro,
dois carneiros, três carneiros, quatro carneiros, pronto, agora o
quinto carneiro enganchou e não quer entrar no meu pensamento. Vem,
carneiro. Por favor. Tá fazendo o que aí fora? Arranjou uma
namorada, foi? Então já são mais dois carneiros, ele e a namorada,
fora os filhotinhos que eles podem ter, olha só que maravilha, vão
ser não sei quantos carneirinhos pra contar. Eu vou dormir na hora.
Venham, carneiros. Um de cada vez. Podem entrar. Esses carneiros
estão de implicância comigo. Eu estou começando a me irritar.
Daqui a pouco eu cometo um carneiricídio. Assim que eles entrarem. O
problema é que eles não entram. Esquece os carneiros e dorme. Será
que, se eu pensar em capim, os carneiros entram pra comer o capim?
Capim. Capim. Capim. Capim. Carneiro come capim? Esquece o capim e
dorme. Já devem ser quase duas e você aí acordada. Amanhã vai
estar um lixo. Eu não vou estar um lixo amanhã pela simples razão
de que vou dormir agora, quer ver? Boa noite, dormi, não dormi?,
ainda não. Mas vou dormir imediatamente. É só não pensar em
amanhã, porque amanhã eu tenho um dia dificílimo pela frente com
uma lista de coisas pra resolver: chamar o homem da televisão,
comprar queijo ralado, dar uma passadinha no laboratório pra buscar
os exames, descobrir se carneiro come capim, eu não acredito que já
é de madrugada e eu estou aqui pensando em capim, esquece os
pensamentos e dorme, vou dormir, você não pode pensar em amanhã,
eu não vou pensar em amanhã, não vou mesmo, de jeito nenhum,
amanhã eu tenho um dia dificílimo com uma lista de coisas pra
resolver: descobrir se carneiro come capim...
Adriana
Falcão, in O doido da garrafa
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