sábado, 17 de junho de 2017

Insônia

Considerando-se que oito horas de sono é o ideal para uma pessoa, quase oito horas de sono deve ser quase o ideal. É lógico. Então, se eu conseguir dormir até a meia-noite e acordar amanhã às sete e vinte, está ótimo. Ou quase ótimo. Eu vou acordar feliz, bem disposta, extremamente capaz, praticamente recuperada. Se eu dormir até a meia-noite. Ainda tenho cinco minutos. Cinco minutos é tempo de sobra pra uma pessoa pegar no sono, quer ver? Vou pegar no sono em cinco minutos. Boa noite. Estou quase dormindo. Quase. Dormi. Não dormi? Acho que não. Mas vou dormir agora. Senão os pensamentos começam a entrar na minha cabeça e, aí, minha filha, nunca mais. Um pensamento puxa outro, que puxa outro, que puxa outro, parece até que pensamento tem corda. O negócio é não deixar entrar o primeiro, tá vendo? Foi só começar a pensar em não pensar e quando eu vi já estava pensando em pensamento com corda. E de corda pra acorda é um pulo. E é melhor eu não pensar em acordar, senão eu não consigo dormir. E eu preciso estar inteira amanhã. Ou vai ser uma tragédia. Calma, também não é assim. Eu ainda tenho cinco minutos pra pegar no sono. Se bem que agora já não faltam mais cinco, quantos minutos se passaram até agora? Esquece e dorme. Boa noite. Dormi. Não dormi? Se eu tivesse dormido não estaria pensando se dormi ou não dormi. Estaria dormindo. Isso prova que eu não dormi ainda. Amanhã vou acordar um lixo. E eu tenho um dia dificílimo pela frente, com uma lista enorme de coisas pra resolver: vinte minutos de meditação ao acordar, ginástica às oito, reunião às dez em ponto, consertar o carburador do carro, desmarcar o dentista, comprar tinta pra impressora, ligar pro Geraldo... esquece o Geraldo e dorme. Você já trancou a porta, já fechou o gás, já tomou seu banho, já foi na cozinha, já bebeu seu leitinho quente, já pensou em quantas calorias tem um copo de leite quente, você já se preocupou demais por hoje. Você precisa dormir. Isso. Eu preciso dormir. Então, boa noite. Tem certeza de que eu tranquei a porta? Tranquei, sim. Tenho certeza. Fechou o gás? Claro. Não lembra? Logo depois do banho. Fechei o gás, fui na cozinha, bebi meu leitinho quente, quantas calorias tem um copo de leite? Eu não devia ter botado açúcar pra depois não ficar culpada. Depois eu fico culpada. Agora eu vou dormir. Já me preocupei demais por hoje e por amanhã... Não, eu não vou pensar no que tenho que fazer amanhã. Tenho um dia dificílimo pela frente, com uma lista de coisas pra resolver, e se eu não dormir até meia-noite e meia, uma hora, vou terminar pulando a meditação. É uma opção. Faço ginástica às oito e de lá vou direto pra reunião, às dez em ponto, no centro da cidade, vou de carro ou vou de táxi? Amanhã você resolve isso. Certo. Eu resolvo isso amanhã. Boa noite. Mas eu já tenho coisa demais pra resolver amanhã, assim não vai dar tempo. Será que não é melhor ir pro centro da cidade de táxi pra poder ir resolvendo outras coisas no caminho? Está resolvido. Amanhã eu resolvo o resto. Boa noite. Se eu conseguir dormir até uma e meia e acordar às nove, já está bom. Pulo a meditação, falto à ginástica, pego um táxi pro centro da cidade e aí só falta resolver o resto da vida. Mas eu tenho o dia inteiro pra resolver tudo. Ligar pro Geraldo, terminar o relatório, passar no supermercado, chamar o homem da televisão, esquece o homem da televisão e dorme. Já deve ser bem mais de uma. Olho o relógio ou não olho? Se eu olhar e for muito tarde, vou ficar nervosa. Mas, se eu não olhar, vou ficar imaginando que é mais tarde do que é na verdade e fico mais nervosa ainda. Esquece o relógio e dorme. Boa noite. Eu não vou pensar em amanhã, não vou pensar em hoje, não vou pensar nas horas, não vou pensar em nada. Nadinha. Um nada absoluto. Pensar em nada é pensar em alguma coisa? Olha aí eu pensando de novo. É por isso que eu não durmo. Durmo sim. Quer ver? Vou contar carneirinhos. Um carneiro, dois carneiros, três carneiros, quatro carneiros, pronto, agora o quinto carneiro enganchou e não quer entrar no meu pensamento. Vem, carneiro. Por favor. Tá fazendo o que aí fora? Arranjou uma namorada, foi? Então já são mais dois carneiros, ele e a namorada, fora os filhotinhos que eles podem ter, olha só que maravilha, vão ser não sei quantos carneirinhos pra contar. Eu vou dormir na hora. Venham, carneiros. Um de cada vez. Podem entrar. Esses carneiros estão de implicância comigo. Eu estou começando a me irritar. Daqui a pouco eu cometo um carneiricídio. Assim que eles entrarem. O problema é que eles não entram. Esquece os carneiros e dorme. Será que, se eu pensar em capim, os carneiros entram pra comer o capim? Capim. Capim. Capim. Capim. Carneiro come capim? Esquece o capim e dorme. Já devem ser quase duas e você aí acordada. Amanhã vai estar um lixo. Eu não vou estar um lixo amanhã pela simples razão de que vou dormir agora, quer ver? Boa noite, dormi, não dormi?, ainda não. Mas vou dormir imediatamente. É só não pensar em amanhã, porque amanhã eu tenho um dia dificílimo pela frente com uma lista de coisas pra resolver: chamar o homem da televisão, comprar queijo ralado, dar uma passadinha no laboratório pra buscar os exames, descobrir se carneiro come capim, eu não acredito que já é de madrugada e eu estou aqui pensando em capim, esquece os pensamentos e dorme, vou dormir, você não pode pensar em amanhã, eu não vou pensar em amanhã, não vou mesmo, de jeito nenhum, amanhã eu tenho um dia dificílimo com uma lista de coisas pra resolver: descobrir se carneiro come capim...
Adriana Falcão, in O doido da garrafa

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