A
esposa, Dona Munda, espera no corredor. A obediência está escrita
na curva das suas costas. Contudo, há na sua voz um travo de
impaciência:
— Eu
não disse?
— Nem
me deixou auscultar…
— O
senhor estudou doenças. Eu aprendi foi na doença.
— O
sofrimento é sempre a nossa escola maior.
— Não
falo disso. Falo desse homem, ele é que foi a minha doença, Doutor
Sidonho.
Mais
nova, escutava as outras lamentarem-se do destino, elas que estavam
na flor da idade. Nunca lhe doeu tanto uma inveja. Porque, a ela,
nenhuma idade tinha sido de flores. Amarelecida a idade, esbateu-se o
sonho de ser pétala, simples lembrança da fragrância.
— Veja
o que esse estupor me fez, deu-me cabo da idade, agora sofro de rugas
até na alma. — Você ainda é muito bonita, Dona Munda.
— Deixe
esses elogios para a minha filha Deolinda.
Dona
Munda tem cinquenta anos. Sabe a idade. Mas não parece ter a certeza
de estar viva. Certa está da sua antecipada viuvez. Na Vila a
conhecem por “semiviúva”. Daí a casa sempre obscura. O luto já
arrumado poupa nas improvisadas urgências: está-se antecipando o
desevento. E não é a opinião contrária do médico que lhe rouba a
certeza: o marido não tardaria a definitivar-se.
—
Bartolomeu falou de pagamentos. Ele
sabe de alguma coisa?
— O
fulano nunca sabe nada. Quem não sabe de nada sempre desconfia de
tudo.
— Eu
já disse, Dona Munda, o que eu faço aqui, convosco, não é um
serviço. Não quero ouvir falar em pagar.
—
Agora, o fulano começou com a mania
que eu tenho de parar com o meu trabalho de lavadeira.
Desde
há muito que Munda ganhava a vida lavando roupa para o pequeno
hospital da Vila. Mas agora, que eclodira a epidemia, o marido se
opõe a que roupa contaminada dos tresandarilhos entre no quintal de
sua casa. Não importa que esses lençóis venham já desinfectados.
— Você
sabe do que falo, Mundinha — argumentou Bartolomeu. —
Desinfectam-se micróbios. Não se desinfectam espíritos…
A
ordem acabou sendo negociada: a esposa lavaria apenas a roupa que não
provinha da enfermaria onde os tresandarilhos estavam confinados.
— Veja
as minhas mãos, Doutor Sidónio. Acha que estão doentes, as minhas
mãos.
O
médico contempla a mulher e avalia das suas parecenças com a filha,
Deolinda. Dona Munda é mulata. Na região não se conhece uma outra
mestiça que tenha casado com um negro. Ela deu o passo com coragem.
Teve que romper com a família que a acusou de “fazer a raça andar
para trás”. Bartolomeu Sozinho também foi obrigado a cortar laços
com os seus. Trazer uma mulata para o seio familiar era uma ousadia,
mais que isso: uma traição. “Mas ela é quase negra”, ainda
argumentou. “Os mulatos são pretos só quando lhes convém”, foi
a resposta.
No
dia em que o jovem Bartolomeu Sozinho, envergando o melhor fato do
seu melhor amigo, se apresentou perante a família da noiva, ele
proclamou com solenidade:
— Não
sou preto!
—
Então?
— Sou
extremamente mulato.
Apesar
de tudo, a chamada raça, ao contrário das previsões, não tinha
“retrocedido”. Deolinda era de pele clara, mais clara que a
própria mãe. Para não falar dos tons de pele que se ocultam nas
resguardadas partes do corpo.
— É
verdade, ela é toda muito clarinha — confirma Sidónio.
— Como
sabe?
— Sou
médico, não esqueça, Dona Munda — responde sem pestanejar.
Rapidamente
dá outro rumo à conversa:
— A
propósito, fiquei com a impressão de que o nosso Bartolomeu está
bem mais humorado, bem mais desperto.
— O
fulano — é assim que refere o marido —, o fulano continua
a paspalhar-se na janela para as meninas…
No
fundo, sente pena dele. Desde há anos que Bartolomeu se babuja a
contemplar as meninas da rua. Um dia, quando abrisse a porta e lhe
surgisse uma moça de vistosas carnes, o fulano quedaria petrificado.
— Homem
que baba não morde.
Esse
antecipado falhanço tem, para ela, um sabor de vitória. O médico
sente nesse vaticínio a consumação de antiga vingança.
Sidónio
encosta o guarda-chuva a um canto para depois seguir a dona da casa
até à cozinha. O objeto, para ele corriqueiro, é estranho naquele
contexto. Ali ninguém se proteje da chuva. Espera-se simplesmente
que a chuva passe. Na Vila só existe o guarda-sol. Vale a pena
abrigar-se do astro rei nos dias límpidos. Não vale a pena esperar
é que o nevoeiro passe nas manhãs que nascem sombrias. A neblina —
que deu o nome à Vila — é a fuligem das nuvens. E em nenhum outro
lugar do mundo há tanta nuvem ardendo.
— É
verdade que o seu marido saiu sete vezes de casa?
— Eu
não conto as saídas. Conto só as vezes que ele voltou…
— Está
certo.
— E
lhe digo, Doutor: não fiquei a perder. Porque ele voltou mais vezes
do que saiu.
— Bom,
há maneiras curiosas de fazer contas…
— Para
mim, o meu marido me chegou sempre multiplicado…
Enche
a peneira de arroz. Vai catando os grãos, com a lentidão de uma
carícia. Escuta-se o ribombar de um trovão, as cigarras suspendem o
canto. O silêncio, num segundo, fica maior que a savana. Depois, aos
poucos, os insectos regressam ao estridente concerto.
—
Desculpe a curiosidade, são motivos
profissionais, mas nessas sete saídas não houve registo de doenças
que ele tivesse apanhado?
— Ele
partia já doente, o partir era mesmo a doença dele.
— Mas
com essas outras mulheres…
—
Outras mulheres? Quem disse que havia
outras mulheres?
— Mas,
então, ele não saiu de casa?
— Saiu
por outras razões. Existem outros motivos neste mundo, nem sempre
são mulheres…
—
Desculpe, Dona Munda, não me
intrometo nessas coisas. Mas eu sou médico, preciso saber de doenças
passadas. Incluindo, devo dizer, as doenças venéreas.
— Meu
marido sempre me foi fiel. Ele dormiu com outras mas nunca me traiu.
—
Desculpe, não entendo.
—
Quando ele foi infiel, eu fui infiel
junto com ele.
—
Continuo sem entender.
Estratégia
que ela congeminara para pastorear os devaneios sexuais do seu
companheiro. De noite, o homem já dormido, ela lhe sussurava ao
ouvido maliciosos convites, disfarçando a voz, fazendo-se passar por
outras mulheres. E o incitava com picanterias, jogos de apimentar o
nervo e arrepiar as carnes. Fazia isso para que ele sonhasse
livremente com as mais diversas amantes. E se contentasse assim,
basto e bastante, nos sonhos. No real da vida, o marido se guardava
só para ela.
— Ele
foi infiel, sim. Mas só com as inexistentes.
—
Agora, entendo.
— Eu
fui, sempre, as putas dele.
—
Esperteza sua, Dona Munda. Tiro-lhe o
chapéu.
O
sorriso ralo é, em seu rosto, o florescer do capim. Nenhum orgulho,
nenhuma bandeira de vaidade.
— Me
putifiquei tanto, Doutor — vai repetindo. Mas não é um
lamento. Simples constatação. E suspira, em conclusão: — Para
a mulher há dois momentos felizes na cama: o primeiro, quando o
homem se atira para cima dela, e o segundo, quando o homem sai de
cima dela.
Faz
saltar o arroz na peneira para separar as impurezas. Depois, vence-se
a si mesma, para chegar à confidência:
— Posso
dizer uma coisa, Doutor? Essas vezes que fui puta, foram os meus
únicos momentos de prazer.
Esse
tempo, porém, teve fim. Agora, já nem esposa nem puta. Há anos que
o casal se apartou, cada qual em seu quarto, cada qual em seu sonho.
—
Agora, somos como o dedo e o anel: não
nos fazemos falta, mas não vivemos longe um do outro.
Parece
aceitar o peso do destino. Ao menos, no final de tanta ingloriosa
batalha, lhe resta esse único despojo de guerra: a culpa. No resto,
Mundinha partilha a condição das demais mulheres da Vila:
envergonhada de ter nascido, temente de viver e triste por não saber
morrer.
— Posso
perguntar-lhe uma coisa? Por que razão vocês passaram a dormir
separados?
— A
vida é um rio, Doutor: a água junta e separa.
— Você
é feliz, Dona Munda?
— Não
é que seja infeliz. Eu não sou é feliz.
E
explica: a ausência dupla de felicidade e infelicidade é ainda mais
penosa que o sofrimento. O verdadeiro castigo não é o inferno com
as suas chamas devoradoras. A punição maior é o purgatório
eterno.
— Uma
coisa aprendi na vida. Quem tem medo da infelicidade nunca chega a
ser feliz.
E
sorri, acariciada não se sabe por que lembrança. Depois sacode a
cabeça, apoia o braço no joelho para se erguer. Por fim, enfrenta o
médico olhos nos olhos.
— Fora
isso, Doutor, agora vamos ao assunto próprio.
— Que
assunto?
—
Trouxe o remédio?
— Que
remédio? O seu marido já não precisa de mais nada.
— Oh,
Doutor, já esqueceu? Eu quero um remédio para ele ficar pior, um
remédio para ele ficar pioríssimo… para ele… bom, já disse…
O
médico português rodopia pela sala, a conversa passou, de súbito,
a sofrer de um insuportável peso.
—
Esqueça isso. Comigo não, Dona
Munda, eu sou médico, curo pessoas…
— Pois
cure-me a mim. Bartolomeu está tão doentíssimo, ele já é mais
doença que pessoa.
— Sou
médico… — Ele está doente mas sou eu quem sofre as dores dele.
Sempre fui. Não quero mais.
Munda
deposita a peneira no chão para rodear, com sofreguidão, as mãos
do médico. Ainda há pouco era o velho Bartolomeu Sozinho que lhe
apertava os dedos como se quisesse aprisionar a alma do visitante.
Agora é a esposa que suplica por uma morte tão limpa e leve que nem
arranhão causaria na memória. Que aquilo não era imoralidade
nenhuma. No fundo o marido já estava falecido, o remédio era só
para ele, Bartolomeu, se lembrar de que estava morto.
Com
gestos bruscos, Sidónio se liberta das mãos dela. Ao erguer-se, ele
tropeça na peneira e o arroz se espalha pelo chão. O médico,
atabalhoado, se desculpa e, com passo célere, se afasta, rua afora.
A
porta de rede fica batendo como se prolongasse a insistência de
Munda:
— Não
esqueça, Doutor Sidonho. Não esqueça do remédio.
Mia
Couto, in
Venenos de Deus, remédios do Diabo
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