Mas,
para que contar ao senhor, no tinte, o mais que se mereceu? Basta o
vulto ligeiro de tudo. Como Deus foi servido, de lá, do estralal do
sol, pudemos sair, sem maiores estragos. Isto é, uns homens mortos,
e mais muitos dos cavalos. Mesmo o mais grave sido que restamos sem
os burros, fugidos por infelizes, e a carga quase toda, toda, com os
mantimentos, a gente perdemos. Só não acabamos sumidos
dextraviados, por meio do regular das estrelas. E foi. Saímos dali,
num pintar de aurora. E em lugares deerrados. Mais não se podia. Céu
alto e o adiado da lua. Com outros nossos padecimentos, os homens
tramavam zuretados de fome ― caça não achávamos ― até que
tombaram à bala um macaco vultoso, destrincharam, quartearam e
estavam comendo. Provei. Diadorim não chegou a provar. Por quanto ―
juro ao senhor ― enquanto estavam ainda mais assando, e manducando,
se soube, o corpudo não era bugio não, não achavam o rabo. Era
homem humano, morador, um chamado José dos Alves! Mãe dele veio de
aviso, chorando e explicando! era criaturo de Deus, que nú por falta
de roupa... Isto é, tanto não, pois ela mesma ainda estava vestida
com uns trapos; mas o filho também escapulia assim pelos matos, por
da cabeça prejudicado. Foi assombro. A mulher, fincada de joelhos,
invocava. Algum disse! ― Agora, que está bem falecido, se come o
que alma não é, modo de não morrermos todos... Não se achou
graça. Não, mais não comeram, não puderam. Para acompanhar, nem
farinha não tinham. E eu lancei. Outros também vomitavam. A mulher
rogava. Medeiro Vaz se prostrou, com febre, diversos perrengavam. ―
Aí, então, é a fome? ― uns xingavam. Mas outros conseguiram da
mulher informação: que tinha, obra de quarto-de-légua de lá, um
mandiocal sobrado. ― Arre que não! ― ouvi gritarem: que, de
certo, por vingança, a mulher ensinasse aquilo, de ser
mandioca-brava! Esses olhavam com terrível raiva. Nesse tempo, o
Jacaré pegou de uma terra, qualidade que dizem que é de bom
aproveitar, e gostosa. Me deu, comi, sem achar sabor, só o pepêgo
esquisito, e enganava o estômago. Melhor engulir capins e folhas.
Mas uns já enchiam até capanga, com torrão daquela terra. Diadorim
comeu. A mulher também aceitou, a coitada. Depois Medeiro Vaz passou
mal, outros tinham dôres, pensaram que carne de gente envenenava.
Muitos estavam doentes, sangrando nas gengivas, e com manchas
vermelhas no corpo, e danado doer nas pernas, inchadas. Eu cumpria
uma disenteria, garrava a ter nôjo de mim no meio dos outros. Mas
pudemos chegar até na beira do dos-Bois, e na Lagoa Sussuarana, ali
se pescou. Nós trouxemos aquela mulher, o tempo todo, ela temia de
que faltasse outro de-comer, e ela servisse. ― Quem quiser bulir
com ela, que me venha! ― Diadorim garantiu. ― Que só venha! ―
eu secundei, do lado dele. Matou-se capivara gorda, por fim. Dum
geralista roto, ganhamos farinha-de-burití, sempre ajudava. E
seguimos o corgo que tira da Lagoa Sussuarana, e que recebe o do
Jenipapo e a Vereda-do-Vitorino, e que verte no Rio Pandeiros ―
esse tem cachoeiras que cantam, e é d água tão tinto, que papagaio
voa por cima e gritam, sem acordo: ― É verde! É azul! É verde! É
verde!... E longe pedra velha remelêja, vi. Santas águas, de
vizinhas. E era bonito, no correr do baixo campo, as flores do
capitão-da-sala ― todas vermelhas e alaranjadas, rebrilhando
estremecidas, de reflexo. ― E o cavalheiro-da-sala... ― Diadorim
falou, entusiasmado. Mas o Alaripe, perto de nós, sacudiu a cabeça.
― Em minha terra, o nome dessa ― ele disse ― é dona-joana...
Mas o leite dela é venenoso…
Esbandalhados
nós estávamos, escatimados naquela esfregada. Esmorecidos é que
não. Nenhum se lastimava, filhos do dia, acho mesmo que ninguém se
dizia de dar por assim. Jagunço é isso. Jagunço não se escabrêia
com perda nem derrota ― quase que tudo para ele é o igual. Nunca
vi. Pra ele a vida já está assentada! comer, beber, apreciar
mulher, brigar, e o fim final. E todo o mundo não presume assim?
Fazendeiro, também? Querem é trovão em outubro e a tulha cheia de
arroz. Tudo que eu mesmo, do que mal houve, me esquecia. Tornava a
ter fé na clareza de Medeiro Vaz, não desfazia mais nele, digo.
Confiança ― o senhor sabe ― não se tira das coisas feitas ou
perfeitas! ela rodeia é o quente da pessoa. E despaireci meu
espírito de ir procurar Otacília, pedir em casamento, mandado de
virtude. Fui fogo, depois de ser cinza. Ah, a algum, isto é que é,
a gente tem de vassalar. Olhe! Deus come escondido, e o diabo sai por
toda parte lambendo o prato... Mas eu gostava de Diadorim para poder
saber que estes gerais são formosos.
Guimarães
Rosa, in Grande sertão: veredas
Nenhum comentário:
Postar um comentário