sexta-feira, 9 de junho de 2017

Esmorecidos é que não

Mas, para que contar ao senhor, no tinte, o mais que se mereceu? Basta o vulto ligeiro de tudo. Como Deus foi servido, de lá, do estralal do sol, pudemos sair, sem maiores estragos. Isto é, uns homens mortos, e mais muitos dos cavalos. Mesmo o mais grave sido que restamos sem os burros, fugidos por infelizes, e a carga quase toda, toda, com os mantimentos, a gente perdemos. Só não acabamos sumidos dextraviados, por meio do regular das estrelas. E foi. Saímos dali, num pintar de aurora. E em lugares deerrados. Mais não se podia. Céu alto e o adiado da lua. Com outros nossos padecimentos, os homens tramavam zuretados de fome ― caça não achávamos ― até que tombaram à bala um macaco vultoso, destrincharam, quartearam e estavam comendo. Provei. Diadorim não chegou a provar. Por quanto ― juro ao senhor ― enquanto estavam ainda mais assando, e manducando, se soube, o corpudo não era bugio não, não achavam o rabo. Era homem humano, morador, um chamado José dos Alves! Mãe dele veio de aviso, chorando e explicando! era criaturo de Deus, que nú por falta de roupa... Isto é, tanto não, pois ela mesma ainda estava vestida com uns trapos; mas o filho também escapulia assim pelos matos, por da cabeça prejudicado. Foi assombro. A mulher, fincada de joelhos, invocava. Algum disse! ― Agora, que está bem falecido, se come o que alma não é, modo de não morrermos todos... Não se achou graça. Não, mais não comeram, não puderam. Para acompanhar, nem farinha não tinham. E eu lancei. Outros também vomitavam. A mulher rogava. Medeiro Vaz se prostrou, com febre, diversos perrengavam. ― Aí, então, é a fome? ― uns xingavam. Mas outros conseguiram da mulher informação: que tinha, obra de quarto-de-légua de lá, um mandiocal sobrado. ― Arre que não! ― ouvi gritarem: que, de certo, por vingança, a mulher ensinasse aquilo, de ser mandioca-brava! Esses olhavam com terrível raiva. Nesse tempo, o Jacaré pegou de uma terra, qualidade que dizem que é de bom aproveitar, e gostosa. Me deu, comi, sem achar sabor, só o pepêgo esquisito, e enganava o estômago. Melhor engulir capins e folhas. Mas uns já enchiam até capanga, com torrão daquela terra. Diadorim comeu. A mulher também aceitou, a coitada. Depois Medeiro Vaz passou mal, outros tinham dôres, pensaram que carne de gente envenenava. Muitos estavam doentes, sangrando nas gengivas, e com manchas vermelhas no corpo, e danado doer nas pernas, inchadas. Eu cumpria uma disenteria, garrava a ter nôjo de mim no meio dos outros. Mas pudemos chegar até na beira do dos-Bois, e na Lagoa Sussuarana, ali se pescou. Nós trouxemos aquela mulher, o tempo todo, ela temia de que faltasse outro de-comer, e ela servisse. ― Quem quiser bulir com ela, que me venha! ― Diadorim garantiu. ― Que só venha! ― eu secundei, do lado dele. Matou-se capivara gorda, por fim. Dum geralista roto, ganhamos farinha-de-burití, sempre ajudava. E seguimos o corgo que tira da Lagoa Sussuarana, e que recebe o do Jenipapo e a Vereda-do-Vitorino, e que verte no Rio Pandeiros ― esse tem cachoeiras que cantam, e é d água tão tinto, que papagaio voa por cima e gritam, sem acordo: ― É verde! É azul! É verde! É verde!... E longe pedra velha remelêja, vi. Santas águas, de vizinhas. E era bonito, no correr do baixo campo, as flores do capitão-da-sala ― todas vermelhas e alaranjadas, rebrilhando estremecidas, de reflexo. ― E o cavalheiro-da-sala... ― Diadorim falou, entusiasmado. Mas o Alaripe, perto de nós, sacudiu a cabeça. ― Em minha terra, o nome dessa ― ele disse ― é dona-joana... Mas o leite dela é venenoso…
Esbandalhados nós estávamos, escatimados naquela esfregada. Esmorecidos é que não. Nenhum se lastimava, filhos do dia, acho mesmo que ninguém se dizia de dar por assim. Jagunço é isso. Jagunço não se escabrêia com perda nem derrota ― quase que tudo para ele é o igual. Nunca vi. Pra ele a vida já está assentada! comer, beber, apreciar mulher, brigar, e o fim final. E todo o mundo não presume assim? Fazendeiro, também? Querem é trovão em outubro e a tulha cheia de arroz. Tudo que eu mesmo, do que mal houve, me esquecia. Tornava a ter fé na clareza de Medeiro Vaz, não desfazia mais nele, digo. Confiança ― o senhor sabe ― não se tira das coisas feitas ou perfeitas! ela rodeia é o quente da pessoa. E despaireci meu espírito de ir procurar Otacília, pedir em casamento, mandado de virtude. Fui fogo, depois de ser cinza. Ah, a algum, isto é que é, a gente tem de vassalar. Olhe! Deus come escondido, e o diabo sai por toda parte lambendo o prato... Mas eu gostava de Diadorim para poder saber que estes gerais são formosos.
Guimarães Rosa, in Grande sertão: veredas

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