domingo, 11 de junho de 2017

Aí é too much

Depois brotará o vazio no pasto da solidão, e ela perguntará antes de dormir para seu confidente, o travesseiro: “Não é melhor ser menos exigente? Quem vai cuidar de mim quando ficar velhinha?” Até lá, vamos curtir, baby …
Ela jamais diria que a solteira é aquela que perdeu a ocasião de tornar um homem infeliz. Acreditava nas relações. Apostava no amor. Sua solteirice? Temporária, posta em xeque.
Queria apenas curar a ressaca da separação recente. Farreando, por que não? Queria por um período aliar a independência financeira com a afetiva. Queria se divertir sem parar, ir ao cinema sozinha, viajar com amigas e amigos, reclamar que todos os homens são tolos e infantis, e que os caras mais lindos, gays.
Porém, a fase festiva sofreu dois grandes baques:
1. O ex-marido se juntou com uma garota que não precisava de sutiã, luzes no cabelo, nem maquiagem, e andava enjoando em demasia; o peito tinha aumentado, e a barriga, começado a ficar redonda. Aquele ex que nunca quis ter filhos. Mudou de ideia ou foi forçado a?
2. O anúncio de que a melhor amiga, de quem recebia convites para as melhores festas, com quem saía todos os finais de semana e aprendeu a ser adolescente depois de madura, viajava nos feriados prolongados, desabafava sobre as loucuras do ex e as idiossincrasias das paqueras, estava… namorando! Com um garoto interessante, cheio de amigos interessantes que trabalhavam juntos num coletivo interessante e faziam projetos de interesse social, tecnológico e além de tudo sustentáveis.
Claro que ela refez os planos, baixou a guarda, deixou a teimosia no armário e flutuou pela correnteza da vida. Até enroscar numa curva e ser seduzida por Pedro, que tocava pandeiro no grupinho de pagode do coletivo, que se reunia no happy hour às sextas-feiras. E que fez tudo certo: a esnobou até o limite, xavecou no momento preciso, investiu com as armas apropriadas, disse o que precisava ser dito e, enfim, a beijou exatamente quando a brecha apareceu depois de gentilmente trazer a quinta latinha.
Pedro foi um mestre. Conquistou o grande troféu, a solteira mais cobiçada. Recebeu reconhecimento dos amigos e adversários. Mas o convívio… Sempre ele a denunciar nossas incongruências.
Pedro é daqueles que atendem celular no elevador. Viciados em UFC. OK, é um segmento forte do mercado. Que buzinam para os carros da frente assim que abre o farol. Tudo bem, ela se dizia, nem tudo é perfeito. Que param em vagas de idosos no shopping e ainda contam vantagem: “Dentro de estabelecimentos comerciais não podem multar.”
Um dia ele implicou com a unha vermelha dela. “Não é coisa de empregada?”, disse ao entrar no carro quando ela foi pegá-lo, desviando do caminho, num dia de congestionamento recorde, sem ao menos passar na sua casa, para não atrasarem para o sambão do coletivo, para o qual trocou o almoço pela manicure.
Calma, garota, não seja exigente. Sou suficientemente lúcida para admitir que não existe o par perfeito, ilusão, escapismo utópico inventado pelos românticos, e que exigir de alguém o mesmo comportamento social é um exercício de fraqueza narcisista de pessoas problemáticas que só conseguem se relacionar com o espelho.
Sustos apareceram no primeiro jogo de futebol pela TV que viram juntos. Ela não era fanática. Nem o ex. Gostava, assistia, e que ganhasse o melhor.
Já Pedro… O time dele disputava cabeça com cabeça a liderança do campeonato com o de maior rivalidade. Xingava o juiz e os bandeirinhas sem economia. O fato de uma bandeirinha ser mulher incrementava os impropérios: “Vaca, piranha! Vai pra cozinha, filha da mãe!” Ela achava engraçado porque quando a decisão do outro bandeirinha, homem, era colocada em dúvida, sua heterossexualidade também.
Quando o zagueiro do próprio time deu uma furada, expressões de preconceito social foram proferidas sem nenhum sentimento de culpa: “Burro! Imbecil! Se pensasse direito não seria jogador de futebol!”
Quando o time fez um gol, a gritaria foi suficiente para matar de vez todos aqueles com problemas cardíacos na vizinhança. No apito final, palavras de carinho e solidariedade foram proferidas quando ele abriu a janela e começou a gritar: “Chupa, desgraçados, filhos da pu%$! Toma, seus via#$s do car%&*$!” O tempo que ele ficou se comunicando aos berros com outros vizinhos aliados e adversários foi suficiente para esvaziar o estádio.
Então, como se diz no jargão do esporte bretão, o que era promessa virou dúvida. Mas antes de um julgamento sem direito a defesa, ela ouviu do travesseiro: “Egocêntrica, não consegue conviver com ninguém, perdoar, aceitar as diferenças, passará o resto dos dias sozinha! O problema está em você! Perdeu a prática, menina. Vamos. Vai dar certo.”
Ficou surpresa quando numa manhã viu na rede social que ele mudara o status para “um relacionamento sério”. Surpresa, lisonjeada e receosa. Pedro jogava publicamente um estatuto de responsabilidades. Já está na hora de alterarmos o status?
À tarde, o pânico tomou conta. Ele mudou a foto do perfil. Não era mais aquela em que beijava o escudo do time, mas uma foto dos dois, isso mesmo, dele com ela, abraçados no sambão, olhando para a lente, cada um segurando uma latinha, foto de que ela nem se lembrava, em que, por sinal, ela estava péssima, de retinas vermelhas e com a testa enrugada. Parecia uma tia e seu afilhado.
Antes mesmo de ela sugerir que aquela foto não era apropriada, recebeu uma mensagem com outra foto deles abraçados anexada, em que ela estava pior, com a sugestão: “Se quiser usar no seu avatar.”
Foi o fim. Celular no elevador, impropérios futebolísticos, comentários desrespeitosos que exaltam a luta de classes, parar em vaga de idosos e implicar com esmalte vermelho… Mas foto de casalzinho no perfil individual de rede social? Aí é too much.
Sua resposta foi um calculado: “Pedro, precisamos conversar.”
Marcelo Rubens Paiva, in As verdades que elas não dizem

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