quarta-feira, 14 de junho de 2017

A um jovem

Prezado Alípio:

Ontem à noite, ao sair você de nosso apartamento, onde veio em busca de sabedoria grega e só encontrou um conhaque e um gato por nome Crispim, assentei de reduzir a escrito o que lhe dissera. Aula de ceticismo? Não. Ele se aprende sozinho. A única coisa que se pode remotamente concluir do que conversamos é: não vale a pena praticar a literatura, se ela contribui para agravar a falta de caridade que trazemos do berço.
Por isso, e porque não adiantaria, não lhe dou conselhos. Dou-lhe anticonselhos, meu filho. E se o chamo de filho, perdoe: é balda de gente madura. Poderia chamar-lhe irmão, de tal maneira somos semelhantes, sem embargo do tempo e do pormenor físico: cultivamos ambos o real ilusório, que é um bem e um mal para a alma. Pouco resta fazer quando não nascemos para os negócios nem para a política nem para o mister guerreiro. Nosso negócio é a contemplação da nuvem. Que pelo menos ele não nos torne demasiado antipáticos aos olhos dos coetâneos absorvidos por ocupações mais seculares. Recolha pois estes apontamentos, Alípio, e saiba que eu o estimo:
I. Só escreva quando de todo não puder deixar de fazê-lo. E sempre se pode deixar.
II. Ao escrever, não pense que vai arrombar as portas do mistério do mundo. Não arrombará nada. Os melhores escritores conseguem apenas reforçá-lo, e não exija de si tamanha proeza.
III. Se ficar indeciso entre dois adjetivos, jogue fora ambos, e use o substantivo.
IV. Não acredite em originalidade, é claro. Mas não vá acreditar tampouco na banalidade, que é a originalidade de todo mundo.
V. Leia muito e esqueça o mais que puder.
VI. Anote as ideias que lhe vierem na rua, para evitar desenvolvê-las. O acaso é mau conselheiro.
VII. Não fique baboso se lhe disserem que seu novo livro é melhor do que o anterior. Quer dizer que o anterior não era bom.
VIII. Mas se disserem que seu novo livro é pior do que o anterior, pode ser que falem verdade.
IX. Não responda a ataques de quem não tem categoria literária: seria pregar rabo em nambu. E se o atacante tiver categoria, não ataca, pois tem mais que fazer.
X. Acha que sua infância foi maravilhosa e merece ser lembrada a todo momento em seus escritos? Seus companheiros de infância aí estão, e têm opinião diversa.
XI. Não cumprimente com humildade o escritor glorioso, nem o escritor obscuro com soberba. Às vezes nenhum deles vale nada, e na dúvida o melhor é ser atencioso para com o próximo, ainda que se trate de um escritor.
XII. O porteiro do seu edifício provavelmente ignora a existência, no imóvel, de um escritor excepcional. Não julgue por isso que todos os assalariados modestos sejam insensíveis à literatura, nem que haja obrigatoriamente escritores excepcionais em todos os andares.
XIII. Não tire cópias de suas cartas, pensando no futuro. O fogo, a umidade e as traças podem inutilizar sua cautela. É mais simples confiar na falta de método desses três críticos literários.
Carlos Drummond de Andrade, in A bolsa & a vida

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