Não
sei que filósofo foi que disse que a palavra queijo só tem sentido
para alguém que já tenha comido um queijo. É óbvio. Se a pessoa
nunca viu, cheirou e comeu um queijo, ela não terá ideia alguma do
que é um queijo, ao ler ou ouvir a palavra queijo . Pois eu,
esquecido dessa lição elementar de filosofia, tentei ensinar queijo
a quem nunca havia experimentado um queijo... Tentei levar minhas
netas a viajar pelo mundo da minha infância, mundo no qual elas
nunca estiveram. Falei sobre casas de pau a pique, fogões de lenha,
minas d’água, monjolos, fornos de barro, galinhas botando ovo,
“casinhas” e penicos, cheiros de capim-gordura e bosta de vaca,
assombrações... Queria levá-las a passear comigo pelo mundo da
minha infância, na roça. Queria que fossem minhas companheiras.
Convidei-as, então, a entrar na minha máquina do tempo. Minha
máquina do tempo é feita com memória e palavras. Entrando na
memória, eu voo para o passado. Escrevendo as minhas memórias, eu
levo outros a voar comigo. Foi isso que Proust fez ao escrever Em
busca do tempo perdido. Eu estava tentando voltar ao tempo
perdido, para que ele não se perdesse. Acontece que acreditei demais
no poder das palavras. Como poderiam as minhas netas experimentar o
meu mundo se elas nunca haviam estado nele?
Quem
entendeu o queijo não foram minhas netas, meninas. Foram os velhos
que na meninice haviam vivido em mundos parecidos com o meu. Escrevi,
e eles viajaram na minha máquina de tempo. Haviam comido o mesmo
queijo que eu. E aí desatamos a conversar...
Lembro-me
da Dina, de 86 anos, que vivia reclusa num asilo de crentes onde era
proibida a entrada de qualquer coisa do “mundo”. A Dina era um
pássaro engaiolado. Preso o corpo, sua alma voava... Começou então,
entre nós, uma longa conversa sobre o passado. O meu passado, o
único passado sobre o qual eu podia escrever, a Dina usou como um
tapete mágico que a levava ao passado que era só dela. E escrevia –
muitas cartas, cheias de segredos (os guardas da gaiola não podiam
saber; se ficassem sabendo, cobririam a gaiola com um pano preto...).
E ela voltou aos dias de menina, morando na beirada do rio, tomando
conta do forno de barro, cuidando para que os pães não queimassem,
vendo a piracema, os peixes prateando sob a luz da lua cachoeira
acima... E assim foi, até que ela ficou repentinamente encantada,
justo quando lhe preparávamos uma festa de aniversário. Nunca se
sabe ao certo... É possível que, em algum lugar misterioso, onde o
tempo tangencia a eternidade, a Dina menina de 86 anos esteja
cuidando de pães e olhando os peixes prateados... Essa cena merece a
eternidade.
Como
a Dina, foram muitos os velhos que voltaram à sua infância viajando
na minha máquina do tempo... Resolvi, então, que de agora em diante
vou continuar a voar na minha máquina de tempo sabendo que meus
companheiros serão os velhos, aqueles que, quando falo queijo,
entendem o que digo por já haverem comido queijo. Um passado que se
compartilha é um sacramento de solidariedade. Quem se lembra do
passado com emoção nunca sentirá tédio no presente.
Volto
ao meu passado. Mas, voltando ao passado, volto também às palavras
que se usavam lá. Não posso falar de Minas usando as palavras dos
gramáticos. A gramática da gente mineira é outra que não a dos
livros. A língua é coisa marota. As palavras não param de mexer. E
se põem a dançar de um jeito que os livros proíbem. Os gramáticos
ficam bravos. Não sabem o que fazer com a língua viva porque o seu
trabalho é, precisamente, mumificar as palavras, para que elas não
se mexam. Trabalho inútil. As palavras não obedecem. Elas são como
as crianças. Não ficam quietas. São malcomportadas. Em Minas até
os escritores se riem da gramática. Duvidam? Leiam Murilo Mendes,
Guimarães Rosa, Adélia Prado. A vida não respeita as regras dos
gramáticos. Já ouvi um homem, numa pastelaria, pedir: “Me dá um
pastéis...” Epa, epa, tudo errado. Não está certo começar uma
frase com pronome oblíquo. Além do que, não é certo misturar o
singular com o plural. “Um pastéis?” Talvez para aquele mineiro
matuto o pastel fosse coisa tão divina que merecesse ser nomeado no
plural.
Tem
um erro de gramática que me dá arrepios. Quando eu ouço as pessoas
dizendo: “Ele pediu pra mim ir lá...”; ou: “Quero silêncio
pra mim dormir”, eu penso que o Tarzã se intrometeu demais no
português, porque era o Tarzã que não falava “eu”: “Mim ama
Jane, mim vai pescar...” Claro, esse era o Tarzã antigo, da roça.
Os Tarzãs modernos estudaram em Oxford, falam português escorreito,
castiço, clássico. Mas não tem jeito, e já me conformei. Onde já
se viu “mim” fazer coisas? “Mim” não faz nada. Errado. “Mim”
faz coisas. O povo decretou. É o jeito do povo falar que faz a
língua. Eu mesmo me revolto contra o Aurélio. Escrevi: “os anús
fazendo seus ruídos característicos...” A revisora me informou
que a grafia certa da ave negra é anus, sem acento. Pode ser.
Mas não quero que meu leitor se confunda. Por via das dúvidas e a
bem da clareza, eu continuo a escrever anús,
para que ninguém confunda o passarinho com o orifício terminal dos
intestinos.
Tudo
isso a propósito da palavra trem, que identifica os mineiros
tanto quanto uai. Trem é palavra coringa. Serve pra tudo.
“Tira esse trem daí...” Quem ouve entende. Trem é um
objeto qualquer. Ou pode ser um conjunto de objetos. Por exemplo: as
coisas que se possuem. “Vou guardar os meus trem...” O curioso
dessa palavra é que, à semelhança do pastel singular falado no
plural, trem vai sempre no singular, mesmo que seja plural.
Eu
vivia na roça. Na roça todos os trem eram de pau. Pau mesmo, e não
madeira. Madeira é palavra de gente da cidade. Houve a idade da
pedra lascada, a idade da pedra polida, a idade dos metais... Por que
não a idade do pau? Pois devia. Dou testemunho: na roça não
era nem pedra nem metal: era pau. Na roça pau era, de fato, “pau
pra toda obra”. Talvez essa seja a origem dessa expressão. A casa
era de pau a pique. O fogo se fazia com paus de lenha. Tudo nos
carros de bois era feito de pau (menos os bois...). A água se bebia
numa vasilha de pau chamada cuia. As cercas se faziam com um pau oco
chamado bambu. E até os canos se faziam com um pau chamado embaúba.
Panela, lamparina, pratos e canecas – coisas de metal eram seres de
um outro mundo.
Aí
aconteceu aquele dia quando o meu pai nos disse que íamos nos mudar
para Lambari. E, para me explicar como era Lambari, ele disse apenas:
“Lá tem trem de ferro...” E foi assim que, num único dia, eu
dei um salto de milhares de anos. Saí do mundo dos “trem de pau”
e me mudei para o mundo do trem de ferro... Saí da roça. Me mudei
para a civilização. Depois conto mais.
Rubem
Alves, in Se eu pudesse viver minha vida novamente
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