Outro
dia soube que morreu uma mulher querida. Tinha um nome meio pomposo,
de marquesa, mas não era nobre nem frequentava os salões dos
decadentes barões da borracha. Com ela morreu a memória de uma
época.
A
Marquesa era uma amazonense que sonhava com o Rio de Janeiro.
Realizou o sonho e morou mais da metade de sua vida num pequeno
apartamento de Copacabana. Quando você se dá conta —, o tempo já
deu suas voltas e foi embora, veloz e matreiro como uma distração.
Era
mãe de uma amiga minha, mas destoava de outras mães, tão
convencionais e carolas, tão donas de casa e voltadas apenas para o
marido, o lar, os filhos. A Marquesa convidava crianças humildes
para brincar com sua filha: crianças que moravam em palafitas na
beira dos igarapés próximos do nosso bairro. Esse gesto generoso
irritava certas mães, que proibiam os “indiozinhos” de conviver
com seus filhos, mas não podiam viver sem as mãos serviçais das
mães desses mesmos curumins e cunhantãs.
Aos
sábados, brincávamos e merendávamos no quintal da casa da
Marquesa; às vezes nos levava para assistir a um filme no cine
Guarany, o antigo teatro Alcazar. Éramos oito ou dez crianças na
matinê de sábado, nossa noite de sonho e fantasia no meio da tarde.
Depois da sessão, tomávamos tacacá na barraca de d. Vitória, ali
na calçada do cine Odeon, uma das maravilhas de Manaus.
Ao
meio-dia, quando eu chegava do Ginásio Pedro II, ia visitar minha
amiga e encontrava a Marquesa na sala, lendo uma revista francesa,
ouvindo Bach ou Villa-Lobos; às vezes ela entrava em casa para
conversar sobre música com a professora de piano da minha irmã
caçula. E entrava também na roda dos homens para falar de política.
O marido dela, um homem rígido e poderoso, sumia quando ela falava.
Não sei por que casaram, talvez por amor, mas os dois amantes
pareciam inimigos, como no poema de Drummond.
Na
primeira semana de abril de 1964, ela reuniu os amigos da filha e
disse que o país estava nas “garras dos bárbaros”. Eu tinha
doze anos e não entendi; mas memorizei essas palavras: nas garras
dos bárbaros. Aos poucos, ela percebeu que o marido bajulava os
milicos, recebia políticos servis e interesseiros, raposas que
passaram a frequentar a sala e o quintal de sua casa. Quando eles
chegavam com garras afiadas e inchados de empáfia, ela saía ou se
trancava no quarto para não ver essa gente.
Foi
nessa época que começou a beber, e, quando bebia muito, era capaz
de desafiar até o diabo, com ou sem farda. Por desamor ou
indiferença — ou por algo mais —, ela se viu sozinha no
casamento e decidiu viajar com a filha para o Rio. Calhou de
conversarmos a sós em várias ocasiões; em algum dia de 1967 lhe
disse que eu também queria partir.
E
então, na despedida, me revelou que era amante de um homem que eu
conhecia: queria viver com ele em Copacabana. Esse era o algo
mais. Ou alguém a mais na vida da Marquesa: uma história de
amor, movida por encontros esporádicos, que duraram mais de duas
décadas.
Ela
se confinou em Copacabana e eu dei voltas pelo Brasil, sempre
pensando em visitá-la, curioso por saber o nome do amante que,
segundo a Marquesa, eu conhecia. Até simulava uma conversa com ela
antes desse encontro prometido e tantas vezes adiado.
Enfim,
visitei-a em 1978, quando lancei no Rio um livrinho de poesia.
Almocei em seu apartamento de Copacabana, depois andamos até o
Forte, onde conversamos sobre sua filha, minha amiga de infância,
que estava morando em Londres.
“Ela
fugiu das garras dos bárbaros?”
A
Marquesa deu uma risada:
“E
das garras da mãe.”
No
fim da tarde, revelou que seu amante — o homem que eu conhecia —
era um dos meus tios solteiros.
A
revelação me deixou mudo por um momento. Mas não resisti e
perguntei qual deles.
“O
galã sonhador”, disse, sem hesitar. “De vez em quando a gente
namora aqui no Rio. Não piso mais em Manaus.”
Revelou
outras coisas de sua vida, e contou detalhes da história amorosa com
o galã sonhador. Nunca os imaginei juntos, nem desconfiei do caso
entre os dois. Foi uma história de amor clandestina, que resistiu ao
mau olhado da província e, depois, à velhice. No fim do nosso
encontro, disse que eu podia aproveitar tudo o que ela havia me
contado.
“Aproveitar?”
“Se
um dia tu escreveres um romance…”
Mais
de vinte anos depois do nosso encontro no Forte de Copacabana, me
lembrei das histórias da Marquesa e, de fato, fiz de alguns lances
de sua vida uma ficção.
Quando
leu o romance, me telefonou para dizer que eu havia exagerado e
inventado tanta coisa que mal se reconheceu na personagem da mulher
adúltera.
“Ainda
bem”, eu disse. “Se tivesse sido fiel à tua história, qual
teria sido a reação da tua filha e do teu ex-marido?”
“Minha
filha teria adorado, porque ela sabe de tudo. E meu ex-marido já
virou pó. Não sabias? Morreu de infarto. Deve estar no inferno,
limpando as botas dos amigos dele.”
Ia
lamentar a morte do pai de minha amiga, mas decidi não dizer nada.
Depois de uns segundos de silêncio, a Marquesa completou: “Além
disso, ele nunca gostou de literatura. Por que iria ler o teu
livro?”.
Milton
Hatoum, in Um solitário à espreita
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