Naquela
noite, como em todas as outras, Zero Madzero saíra para levar os
burros e os cabritos a pastar. Preferia pastorear os seus bichos
quando estava mais fresco e lá, ao longe, a fogueira da sua casa lhe
indicava o único caminho em todo o universo. Devia ser quase
madrugada quando ele olhou o firmamento como quem, na cidade,
consulta o relógio. Eram horas de encaminhar os animais de volta a
casa. Seus olhos ganharam brilho num silencioso agradecimento: só é
olhado pelo céu quem olha para as estrelas. Nem o burriqueiro sabia
o quanto, nos próximos tempos, ele seria contemplado pelos céus.
Apoiou-se
no pau bifurcado que ele esculpira para que as cabras dessem à luz,
em igual número, machos e fêmeas. O brilho em seu rosto era a única
cintilância na aridez da paisagem. Naquelas esqueléticas paragens
só chove quando os joelhos dos bois tocam o chão, as mulheres
cantam e os homens rezam. Mas fazia tempo que não havia bois, há
muito que as mulheres tinham emudecido e os homens perdido a crença.
Todavia,
aquele lugar nem sempre fora um território isolado, longe do mundo,
do outro lado do tempo. Há trinta anos — quando Zero Madzero
nascera — ali se espraiavam as chamadas mphalas verdes, as férteis
colinas dos montes Camuendje. Converteram-se numa ilha esquecida
quando se encheu a albufeira da barragem de Cahora Bassa. O Zambeze
inchou e os riachos de Nkazi e Muzenguezi coalesceram, sepultando
vales e terras baixas. Quando as águas subiram, os mais-velhos
sorriram, satisfeitos. A Bíblia também está a ser escrita na nossa
terra, diziam. Mas depois a inundação conteve-se e sobraram montes,
cabeços e outeiros.
— Nem
o dilúvio merecemos, resmungavam os velhos.
Nascemos
para ser escolhidos, vivemos para escolher. Podia-se dizer de Madzero
que era tonto mas, ao menos, ele escolhera viver nesse lugar de que
se esqueceram os caminhos. Há anos que ele quase não cruzava com
alma vivente. A única pessoa de seu convívio era Mwadia, essa que
tinha corpo de rio e nome de canoa.
E
era para reencontrar a sua esposa que o pastor agora apressava o
passo. Queria regressar antes que fosse manhã. A última coruja já
havia pousado, sinal de que a noite estava prestes a desvanecer-se.
Daí a pouco, a esposa estaria despertando. O burriqueiro anteviu os
grandes olhos da mulher e a savana se encheu de luminações como um
pestanejar dos céus.
— Vou
no caminho de ser Deus.
Arrependeu-se
da ousadia do pensamento. Na igreja lhe ensinaram que Deus só é se
é único, mais que único. Ele que apagasse a multidão de deuses
familiares, essas divindades africanas que teimavam em lhe povoar a
cabeça. Madzero era um “postori”. Noutras palavras, ele era um
crente da Igreja Apostólica, criada por John Marange em 1930. Não
seria exatamente um caso de fé, pois o juízo de Zero não aguentava
nem metade de crença. Ele aderira aos “vapostori” apenas porque,
para ele, o nome soava como um aportuguesamento da palavra pastores
e não de apóstolos. A seita seria onde os pastores pobres
como ele se reuniriam e evocariam o dia em que o planeta inteiro se
converteria numa reverdejante paisagem.
Nos
tempos de hoje, pouco restava da agremiação religiosa. Todavia, o
burriqueiro mantinha-se um seguidor dos preceitos do finado Marange.
Assim, até na doutrina ele se revelava bem distinto da maioria que
frequentava a Igreja Católica. Madzero não era apenas diferente:
ele gostava dessa diferença, trazia-a ao peito como se de uma
medalha se tratasse. Cabelo sempre rapado, não bebia álcool, não
fazia uso dos tambores nem das mbiras para convocar os espíritos.
Enquanto
apressava o regresso a casa, Zero Madzero ergueu os olhos para a
noite como se nela procurasse chão. De repente, o pastor se
arrepiou: um ruidoso fogo rasgou os céus como um chicote de luz.
Parecia um fósforo a ser aceso pelas mãos de Deus. Depois, foi a
explosão. Madzero se apeou da alma, tal o susto. Parecia que o
universo todo se estilhaçara. Sem pisar nem pesar, o pastor se
ajoelhou. Seus lábios imploraram:
— Me
salve, Deus! E acrescentou, em
célere sussurro: E me acudam os meus deuses, também...
Fosse
há uma dezena de anos e o pastor estaria seguro de que se tratava de
um acto de guerra. Mas, agora, era impossível. A guerra era coisa do
passado e o tempo varrera as cinzas e lavara as lembranças.
Decorreram
viscosos instantes, enquanto o mundo reganhou ordem e silêncio. O
burriqueiro viu, longe, uma silhueta ainda incandescente, afocinhada
nas areias. E concluiu tratar-se de uma estrela-cadente. Ela se
despenhara ali, com propósitos que se iriam ainda descortinar.
Ato
descontínuo, assim que a poeira assentou, Zero Madzero foi ver dos
burros e cabritos, seus únicos valores. Espreitou os graus do
horizonte e os degraus do céu. Os cabritos não demoraram a
despontar. Mas os jumentos nem vê-los. Tudo desarreado, cascos
empoeirados, desapeados pelos vãos.
Só
depois de muito chamamento é que os burros assomaram entre brumas e
fumos, aproximando-se em passo resignado e com olhos de obediente
tristeza. Por fim, estavam todos, completos, jumentos e caprinos. Os
asnos, inquietos, agitavam as orelhas. Os cabritos, como sempre,
caminhavam imperturbáveis. Cabrito é bicho que já viu o fim do
mundo. Nada o surpreende.
Cambaleando
na areia, o pastor se aproximou da estrela. O corpo celeste estava
desfigurado, todo amassado, ainda chamuscando em fugazes labaredas.
Zero se admirou do tamanho. Por certo era uma estrela em idade
infantil, dessas que ainda tropeçam nos atalhos do firmamento.
Tombara mesmo nas traseiras da casa, por pouco não acertara no
teto. Madzero, primeiro, levantou os braços a mostrar que não
tinha culpa no acidente. Pobre como era, seria o único a receber
punição. Permaneceu assim, de mãos erguidas, até estar certo de
que não havia testemunha. Depois, cumpriu deveres de fé: cobriu a
pobre defunta com umas pazadas de terra, balbuciando umas
ininteligíveis palavras de encomenda a Deus.
Antes
de entrar em casa ainda espreitou o céu. Seria aquela apenas a
primeira de um chuvisco de estrelas? A savana iria sofrer uma
inundação de luz, enchente de astros desamparados?
Mia
Couto, in O outro pé da sereia
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