À
memória do tio Samir
Quando
não havia nada debaixo da cama ou nas proximidades da rede, eu
procurava os pacotes no quintal e os encontrava num galho do
jambeiro, o papel colorido umedecido pelo sereno.
Aos
seis anos ganhei uma baladeira; aos oito ele me trouxe uma espingarda
de ar comprimido, que eu usava para balear calangos e camaleões e
cobras nos balneários da Vila Municipal ou da estrada da Ponte da
Bolívia. Poupava os beija-flores, diante de qualquer pássaro eu me
acovardava, baixava o cano da espingarda, mas depois mirava o corpo
de uma cobra e disparava um chumbinho que lhe fazia cócegas, esses
répteis são resistentes, cobra só morre a pauladas ou com golpes
de terçado.
A
infância não é infinita: sumiram os trenós iluminados cruzando a
noite amazonense e Papai Noel deixou de ser uma personagem lendária.
Descobri que as armas e os livros não vinham do céu, e sim das mãos
dos meus pais. O fim da lenda coincidiu com as risadas dos meus tios
que contavam histórias natalinas.
Era
uma penca de tios, a diferença de idade entre os dois mais velhos
era de um ano e pouco. Um deles, Sami, contou que meu avô não tinha
dinheiro para comprar presentes para a filharada. No começo da
década de 1940, Papai Noel parava na casa dos meus avós e deixava
espingardas de madeira só para esses dois tios: uma azul, outra
vermelha.
Em
outubro do ano seguinte as espingardas sumiam misteriosamente, mas
elas reapareciam na manhã do dia 25 de dezembro com outras cores, o
cano duplo mais curto, uma rolha em cada cano e o nome de cada menino
gravado no cabo.
“Quando
completei oito anos”, disse tio Sami, “Papai Noel me deu uma
pistola de madeira amarela, com cano duplo. Meu irmão também ganhou
uma pistola parecida, de cor verde.”
Meu
avô levava as espingardas a uma marcenaria e as transformava em
novas armas, diminuídas pela serra manual. No último ano em que
meus tios acreditaram no velho barbudo, ganharam revólveres de
madeira, ambos pretos, mas com cabo de espingarda.
“Uma
arma desengonçada”, disse meu tio Sami. “Não servia nem pra
brincar de bangue-bangue.”
Esses
revólveres ainda foram presenteados para os meus tios mais jovens,
nenhum deles sabia o que fazer com um objeto que não disparava nada,
não fazia barulho nem se iluminava, era apenas um pedaço de pau que
acabava sendo usado nas brigas entre os irmãos. Até que meu avô
aboliu de vez as armas de madeiras e disse que esses velhos vermelhos
e gordos com barba de algodão haviam sumido de Manaus. Foi um modo
de dizer que ele não tinha dinheiro para comprar brinquedos caros.
Os
filhos mais jovens se contentaram com bolas de futebol com enchimento
de sumaúma e também doces que minha avó preparava. Na manhã do
dia 25 de dezembro, a matriarca dizia que Papai Noel tinha deixado
bandejas de doces na geladeira para os filhos. Doces feitos com
semolina e amêndoas, ou folheados com recheio de pistache e tâmara.
Eram presentes mais prazerosos que os revólveres e espingardas, e
por alguns anos a geladeira de querosene foi mais cobiçada que a
árvore de Natal, que raramente se iluminava por causa dos blecautes
prolongados.
Esse
Papai Noel doceiro não se esqueceu de mim. As crianças corriam de
manhã cedo e ficavam sentadas diante da geladeira como um bando de
curumins ansiosos, até que minha avó chegava e distribuía as
guloseimas para os netos.
Penso
que o velho — meu avô — tinha razão. Porque dá um pouco de dó
ver esses velhinhos de vermelho na Amazônia. Balofos e lerdos, com
um sorriso resignado no rosto, eles tocam sininho para crianças que
desconhecem o frio, suas vestes vermelhas ficam ensopadas, até do
capuz goteja suor, como se estivessem numa sauna ou estufa, e não na
neve da Escandinávia.
Ainda
hoje, quando os vejo banhados de suor na carroceria de um caminhão
ou na porta de uma loja, resignados a entreter crianças e
oferecer-lhes um sonho efêmero, penso que Papai Noel poderia usar
uma roupa mais adaptada ao clima quente e úmido do Amazonas.
Um
gorducho de bermuda e camiseta vermelha talvez seja mais verossímil
nas cidades do equador e do Nordeste, ou mesmo nas do Sul e Sudeste,
onde o verão tem sido cada vez mais africano ou amazônico.
Em
São Paulo, com as chuvas e enchentes nessa época natalina, penso
que seria melhor trocar os trenós por canoas e botes. Assim seríamos
mais realistas. Os desvalidos da periferia teriam mais assistência,
e a garotada, ao ver esses canoeiros de vermelho navegando em ruas
inundadas, diriam a seus pais e avós que Papai Noel, com chuva ou
sol, não tinha se esquecido das crianças.
Milton
Hatoum, in Um solitário à espreita
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