sábado, 27 de maio de 2017

Papai Noel no Norte

À memória do tio Samir 
 
Quando não havia nada debaixo da cama ou nas proximidades da rede, eu procurava os pacotes no quintal e os encontrava num galho do jambeiro, o papel colorido umedecido pelo sereno.
Aos seis anos ganhei uma baladeira; aos oito ele me trouxe uma espingarda de ar comprimido, que eu usava para balear calangos e camaleões e cobras nos balneários da Vila Municipal ou da estrada da Ponte da Bolívia. Poupava os beija-flores, diante de qualquer pássaro eu me acovardava, baixava o cano da espingarda, mas depois mirava o corpo de uma cobra e disparava um chumbinho que lhe fazia cócegas, esses répteis são resistentes, cobra só morre a pauladas ou com golpes de terçado.
A infância não é infinita: sumiram os trenós iluminados cruzando a noite amazonense e Papai Noel deixou de ser uma personagem lendária. Descobri que as armas e os livros não vinham do céu, e sim das mãos dos meus pais. O fim da lenda coincidiu com as risadas dos meus tios que contavam histórias natalinas.
Era uma penca de tios, a diferença de idade entre os dois mais velhos era de um ano e pouco. Um deles, Sami, contou que meu avô não tinha dinheiro para comprar presentes para a filharada. No começo da década de 1940, Papai Noel parava na casa dos meus avós e deixava espingardas de madeira só para esses dois tios: uma azul, outra vermelha.
Em outubro do ano seguinte as espingardas sumiam misteriosamente, mas elas reapareciam na manhã do dia 25 de dezembro com outras cores, o cano duplo mais curto, uma rolha em cada cano e o nome de cada menino gravado no cabo.
Quando completei oito anos”, disse tio Sami, “Papai Noel me deu uma pistola de madeira amarela, com cano duplo. Meu irmão também ganhou uma pistola parecida, de cor verde.”
Meu avô levava as espingardas a uma marcenaria e as transformava em novas armas, diminuídas pela serra manual. No último ano em que meus tios acreditaram no velho barbudo, ganharam revólveres de madeira, ambos pretos, mas com cabo de espingarda.
Uma arma desengonçada”, disse meu tio Sami. “Não servia nem pra brincar de bangue-bangue.”
Esses revólveres ainda foram presenteados para os meus tios mais jovens, nenhum deles sabia o que fazer com um objeto que não disparava nada, não fazia barulho nem se iluminava, era apenas um pedaço de pau que acabava sendo usado nas brigas entre os irmãos. Até que meu avô aboliu de vez as armas de madeiras e disse que esses velhos vermelhos e gordos com barba de algodão haviam sumido de Manaus. Foi um modo de dizer que ele não tinha dinheiro para comprar brinquedos caros.
Os filhos mais jovens se contentaram com bolas de futebol com enchimento de sumaúma e também doces que minha avó preparava. Na manhã do dia 25 de dezembro, a matriarca dizia que Papai Noel tinha deixado bandejas de doces na geladeira para os filhos. Doces feitos com semolina e amêndoas, ou folheados com recheio de pistache e tâmara. Eram presentes mais prazerosos que os revólveres e espingardas, e por alguns anos a geladeira de querosene foi mais cobiçada que a árvore de Natal, que raramente se iluminava por causa dos blecautes prolongados.
Esse Papai Noel doceiro não se esqueceu de mim. As crianças corriam de manhã cedo e ficavam sentadas diante da geladeira como um bando de curumins ansiosos, até que minha avó chegava e distribuía as guloseimas para os netos.
Penso que o velho — meu avô — tinha razão. Porque dá um pouco de dó ver esses velhinhos de vermelho na Amazônia. Balofos e lerdos, com um sorriso resignado no rosto, eles tocam sininho para crianças que desconhecem o frio, suas vestes vermelhas ficam ensopadas, até do capuz goteja suor, como se estivessem numa sauna ou estufa, e não na neve da Escandinávia.
Ainda hoje, quando os vejo banhados de suor na carroceria de um caminhão ou na porta de uma loja, resignados a entreter crianças e oferecer-lhes um sonho efêmero, penso que Papai Noel poderia usar uma roupa mais adaptada ao clima quente e úmido do Amazonas.
Um gorducho de bermuda e camiseta vermelha talvez seja mais verossímil nas cidades do equador e do Nordeste, ou mesmo nas do Sul e Sudeste, onde o verão tem sido cada vez mais africano ou amazônico.
Em São Paulo, com as chuvas e enchentes nessa época natalina, penso que seria melhor trocar os trenós por canoas e botes. Assim seríamos mais realistas. Os desvalidos da periferia teriam mais assistência, e a garotada, ao ver esses canoeiros de vermelho navegando em ruas inundadas, diriam a seus pais e avós que Papai Noel, com chuva ou sol, não tinha se esquecido das crianças.
Milton Hatoum, in Um solitário à espreita

Nenhum comentário:

Postar um comentário