Há
poucos dias, em Salvador, me lembrei das viagens para Monte Santo,
Cocorobó, La Paz, Lima e Machu Picchu. Na década de 1970 — e
ainda hoje — muitos jovens peregrinavam pelo Brasil e pela América
Latina; alguns buscavam o prazer da natureza e da vida comunitária
em Trancoso, Ilha Bela, Mauá ou outro lugar, onde sonhavam acordados
com viagens imaginárias num céu artificial; outros buscavam a
beleza das paisagens latino-americanas, com seus altiplanos,
desertos, cerrados e florestas. Muitos viajantes deparavam com algo
tenebroso: a própria terra desta América, povoada de vilarejos e
cidades miseráveis.
Havia
algo mais.
O
condor não era a ave gigantesca da cordilheira dos Andes, e sim o
codinome de uma tenebrosa operação repressora das ditaduras do Cone
Sul. Mas quem sabia disso? A ingenuidade era irmã siamesa do
desatino e dos sonhos utópicos da juventude. Quantas paisagens belas
e também desoladas! Quantos cadernos perdidos ou esquecidos em
acampamentos e pousadas, diários com desenhos e anotações sobre El
Cuzco, ou sobre Mitu, na selva colombiana próxima da fronteira com o
Brasil, ou sobre Iquitos, de onde telefonei para minha mãe, que me
perguntou o que eu estava vendo na cidade peruana.
“Palafitas,
mãe. Casarões arruinados, com paredes descascadas; vejo também um
homem idoso sentado numa cadeira de rodas, uma cadeira improvisada:
pneus murchos de bicicleta, assento e encosto de madeira tosca. O
homem parece uma estátua do passado, acho que é um velho
‘cauchero’; vejo também índios e cholos no porto, todos
carregando caixas de frutas; na praia do rio as crianças brincam de
esconde-esconde ao redor de uma canoa velha, meio emborcada.”
E
logo a voz perguntou:
“Tem
água encanada no hotel? Cuidado com a hepatite…”
Olhei
para as crianças, ia responder, mas a ligação foi interrompida,
como se alguém cortasse o fio de uma conversa entre mãe e filho.
Tentei ligar várias vezes, não consegui. Na manhã do dia seguinte
desci o rio num barco de linha e vi Iquitos como se fosse um bairro
pobre de Manaus, ou um bairro que lembrava a Vila da Barca, em Belém.
Viajar
cansa, pensei, enquanto voltava da Bahia, com a lembrança dos meus
amigos de Salvador, dos estudantes universitários, da Baixa dos
Sapateiros e de Itaparica. Recordei a mulher que trabalhava no
restaurante do hotel, ela só folgava um domingo por mês e mal podia
ver o filho pequeno porque saía às seis da manhã e quando voltava
para casa a criança já estava dormindo.
“Meu
filho me diz: minha mãe, a gente se vê tão pouco. Por quê? E eu
ia responder: sua mãe trabalha o dia todo e nem tem carteira
assinada, mas um menino de seis anos ia entender isso?”
Há
pouco tempo li que catorze brasileiros foram libertados, eles
“trabalhavam” em regime de escravidão numa fazenda em
Correntina. Pensei nesse capitalismo tão brasileiro e
latino-americano, cuja fachada de sociedade avançada esconde formas
contemporâneas de escravidão. Pensei nessa modernidade manca,
talvez incompleta para sempre, na barbárie tão arraigada na nossa
“civilização”, na nossa triste República, cujo Senado é um
dos símbolos máximos da desfaçatez nacional. Pensei na canção de
Caetano: o Haiti é aqui. E me lembrei do celular que eu havia
esquecido na esteira de fiscalização do aeroporto de São Paulo.
Encontrei
a maquininha no depósito de objetos perdidos e extraviados, mostrei
um documento ao funcionário, que me fez algumas perguntas; disse a
ele que nem usava o celular, aliás, mal sabia ligá-lo, mas ele quis
verificar se o aparelho era meu mesmo; apertou um botão e apareceu o
nome de uma mulher. Ele perguntou quem era.
“Minha
mãe”, respondi, com voz seca.
“Você
pode ligar para ela?”
“Posso”,
respondi.
“Mas
é inútil, ela não vai atender.”
Ele
me olhou desconcertado e me devolveu o aparelho desligado.
Milton
Hatoum, in Um solitário à espreita
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