Eles não têm dia certo pra aparecer,
não têm hora pra chegar, não têm hora pra sair.
Não têm amigos nem inimigos. (Até onde
se sabe.)
Não têm a menor importância.
Transitam pelo salão o mínimo possível
(estritamente para ir ao banheiro) e demonstram certa cerimônia com
o ambiente.
Até parece que não é com eles a
alegria das moças, a boa vontade dos maridos, o movimento dos
garçons, os espelhos nas paredes, a aflição dos abandonados, a
euforia dos bêbados, a solidão dos velhinhos, a opinião dos
outros, a sabedoria alheia, as discussões políticas, o carpete
velho e verde, o barulho da coqueteleira, os celulares que tocam, os
brincos, os anéis, as pulseiras, um ou outro olho que brilha, alguns
casais que trocam beijos, as piadas dos grupos, as risadas, as
garrafas de champanhe que estouram, a mesma música de sempre.
Na verdade, eles não têm nada a ver com
aquele bar.
Ficam sempre na mesa 9, no canto deles, e
logo já estão envoltos pela fumaça que produzem, embalados num
assunto qualquer, levemente embriagados no começo.
Ele fala, ela responde, ou vice-versa.
Riem muito.
Às vezes.
Às vezes ficam graves. Pensativos.
Circunspectos.
Algumas noites bebem mais, noutras noites
bebem menos.
De vez em quando pedem um prato. Ou dois.
Mas não pedem sobremesa. Um cafezinho, um licor, a conta, só isso.
Sempre deixam alguma gorjeta.
Que mais se pode dizer deles?
Não muito.
Atravessam a porta de vidro que separa o
bar do resto do mundo e deixam a vida lá fora.
Aí o maître avisa ao garçom: “O
casal da mesa 9!”, e o garçom se prepara, traz uma água, uma
marguerita, um uísque com pouco gelo.
Tem semana que eles vêm no sábado.
Tem semana que vêm na terça.
Tem semana que eles nem aparecem.
O que será que estão fazendo?
Será que ela tem uma filha? Será que
ele tem talento? Será que são namorados? Amantes? Será que faz
diferença? Quem sabe têm uma família? Talvez tenham desavenças.
Pode ser que ele seja médico,
engenheiro, importante, louco, artista, poeta, alegre, triste,
ciclotímico, centroavante, lunático, remador, excelente pianista,
fanático por bolas de gude, descendente de italianos, comunista,
paulista, flamengo doente.
E se ela for fluminense? E se for chata?
Estressada. Mal-humorada. Tensa. E se for bem-sucedida? Devota de
Santa Terezinha? Será que ela gosta de gatos? Será que tem
sinusite? E se for especialmente romântica? E se odiar poesia? E se
for um amor de pessoa? E se ele for embora um dia?
Quem sabe?
Sabe-se deles apenas que chegam sozinhos
e sentam na mesa 9 sempre.
Aí começam: sonho, riso, abraço,
lembrança, novidade, beijo, devem ser muito felizes.
Isso é o que se imagina. Mas ninguém
pode ter certeza.
Olhando assim parece que eles não têm
procedência nem destino.
Não têm nada além daquele instante.
São um durante uma imagem, um enquanto,
ali dentro.
Se não estão na mesa 9, é como se não
existissem.
Será que a vida deles continua da porta
de vidro pra fora, nos outros dias da semana?
Será que eles existem mesmo?
Ou será que são só delirium
tremens?
Adriana Falcão, in O doido da
garrafa
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