Deus, que não tinha problemas de verba,
nem uma oposição para ficar dizendo “Projetos faraônicos!
Projetos faraônicos!”, resolveu, numa semana em que não tinha
mais nada para fazer, criar o mundo. E criou o céu e a terra e as
estrelas, e viu que eram razoáveis. Mas achou que faltava vida na
sua criação e - sem uma idéia muito firme do que queria - começou
a experimentar com formas vivas. Fez amebas, insetos, répteis. As
baratas, as formigas etc. Mas, apesar de algumas coisas bem
resolvidas - a borboleta, por exemplo -, nada realmente o agradou.
Decidiu que estava se reprimindo e partiu para grandes projetos: o
mamute, o dinossauro e, numa fase especialmente megalomaníaca, a
baleia. Mas ainda não era bem aquilo. Não chegou a renegar nada do
que fez - a não ser o rinoceronte, que até hoje Ele diz que não
foi Ele -, e tem explicações até para a girafa, citando Le
Corbusier (“A forma segue a função”). Mas queria outra coisa. E
então bolou um bípede. Uma variação do macaco, sem tanto cabelo.
Era quase o que Ele queria. Mas ainda não era bem aquilo. E,
entusiasmado, Deus trancou-se na sua oficina e pôs-se a trabalhar. E
moldou sua criatura, e abrandou suas feições, e arredondou suas
formas, e tirou um pouquinho daqui e acrescentou um pouquinho ali. E
criou a Mulher, e viu que era boa. E determinou que ela reinaria
sobre a sua criação, pois era sua obra mais bem-acabada.
Infelizmente, o Diabo andou mexendo na
lata de lixo de Deus e, com o que sobrou da Mulher, criou o Homem. E
é por isso que, alguns milhões de anos depois, a Lalinha e o
Teixeira estão sentados num bar, o Teixeira com as mãos da Lalinha
entre as suas, olhando fundo nos seus olhos, tremendo romance, e de
repente a Lalinha puxa as mãos violentamente.
- Seu grandessíssimo...
- O que é isso, Lalinha?
- Agora eu saquei. Saquei tudo. Foi ele
que instruiu você!
- Você está delirando.
- Mas claro. Como eu fui boba. Como é
que você ia saber que o meu perfume preferido era aquele? Foi o
Vinícius que te disse.
- Lalinha, eu juro...
- Mas eu sou uma imbecil! E o disco. O
primeiro disco que você me dá é justamente um disco do Ivan
Lins... Meu Deus, até o beijo atrás da orelha!
O Teixeira olha em volta, preocupado.
Lalinha está exaltada.
- Lalinha, calma.
- Posso até ver o Vinícius ensinando
você. Olha, beija ela ali que é tiro e queda. Ele escolheu você a
dedo. Sabia que você é do tipo que gosto. Igual a ele, o cachorro!
- Lalinha, eu juro pela minha mãe...
- Estava tudo bom demais para ser
verdade. Agora tudo encaixa.
- Não é nada disso que você está
pensando.
- Claro que é! Mas diz pro seu amigo
Vinícius que não vai dar certo. Diz que quase deu, mas eu acordei a
tempo. Diz que ele vai continuar me pagando pensão por muitos e
muitos anos porque tão cedo eu não caso de novo. Ainda mais com um
capacho como você!
- Lalinha, então você acha que eu ia me
submeter a... Ô Lalinha!
- Acho sim, acho sim.
- Está certo. Foi isso mesmo. Mas eu me
apaixonei de verdade, Lalinha. Nosso casamento ia ser um estouro. Vai
ser um estouro.
- Pede a conta.
- Mas Lalinha...
- Pede a conta, Teixeira.
Luís Fernando Veríssimo, in As
mentiras que os homens contam
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