sábado, 13 de maio de 2017

Homens

Deus, que não tinha problemas de verba, nem uma oposição para ficar dizendo “Projetos faraônicos! Projetos faraônicos!”, resolveu, numa semana em que não tinha mais nada para fazer, criar o mundo. E criou o céu e a terra e as estrelas, e viu que eram razoáveis. Mas achou que faltava vida na sua criação e - sem uma idéia muito firme do que queria - começou a experimentar com formas vivas. Fez amebas, insetos, répteis. As baratas, as formigas etc. Mas, apesar de algumas coisas bem resolvidas - a borboleta, por exemplo -, nada realmente o agradou. Decidiu que estava se reprimindo e partiu para grandes projetos: o mamute, o dinossauro e, numa fase especialmente megalomaníaca, a baleia. Mas ainda não era bem aquilo. Não chegou a renegar nada do que fez - a não ser o rinoceronte, que até hoje Ele diz que não foi Ele -, e tem explicações até para a girafa, citando Le Corbusier (“A forma segue a função”). Mas queria outra coisa. E então bolou um bípede. Uma variação do macaco, sem tanto cabelo. Era quase o que Ele queria. Mas ainda não era bem aquilo. E, entusiasmado, Deus trancou-se na sua oficina e pôs-se a trabalhar. E moldou sua criatura, e abrandou suas feições, e arredondou suas formas, e tirou um pouquinho daqui e acrescentou um pouquinho ali. E criou a Mulher, e viu que era boa. E determinou que ela reinaria sobre a sua criação, pois era sua obra mais bem-acabada.
Infelizmente, o Diabo andou mexendo na lata de lixo de Deus e, com o que sobrou da Mulher, criou o Homem. E é por isso que, alguns milhões de anos depois, a Lalinha e o Teixeira estão sentados num bar, o Teixeira com as mãos da Lalinha entre as suas, olhando fundo nos seus olhos, tremendo romance, e de repente a Lalinha puxa as mãos violentamente.
- Seu grandessíssimo...
- O que é isso, Lalinha?
- Agora eu saquei. Saquei tudo. Foi ele que instruiu você!
- Você está delirando.
- Mas claro. Como eu fui boba. Como é que você ia saber que o meu perfume preferido era aquele? Foi o Vinícius que te disse.
- Lalinha, eu juro...
- Mas eu sou uma imbecil! E o disco. O primeiro disco que você me dá é justamente um disco do Ivan Lins... Meu Deus, até o beijo atrás da orelha!
O Teixeira olha em volta, preocupado. Lalinha está exaltada.
- Lalinha, calma.
- Posso até ver o Vinícius ensinando você. Olha, beija ela ali que é tiro e queda. Ele escolheu você a dedo. Sabia que você é do tipo que gosto. Igual a ele, o cachorro!
- Lalinha, eu juro pela minha mãe...
- Estava tudo bom demais para ser verdade. Agora tudo encaixa.
- Não é nada disso que você está pensando.
- Claro que é! Mas diz pro seu amigo Vinícius que não vai dar certo. Diz que quase deu, mas eu acordei a tempo. Diz que ele vai continuar me pagando pensão por muitos e muitos anos porque tão cedo eu não caso de novo. Ainda mais com um capacho como você!
- Lalinha, então você acha que eu ia me submeter a... Ô Lalinha!
- Acho sim, acho sim.
- Está certo. Foi isso mesmo. Mas eu me apaixonei de verdade, Lalinha. Nosso casamento ia ser um estouro. Vai ser um estouro.
- Pede a conta.
- Mas Lalinha...
- Pede a conta, Teixeira.
Luís Fernando Veríssimo, in As mentiras que os homens contam

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