quinta-feira, 4 de maio de 2017

Dão-Lalalão (O Devente) - trecho

Soropita, a bem dizer, não esporeava o cavalo: tenteava-lhe leve e leve o fundo do flanco, sem premir a roseta, vezes mesmo só com a borda do pé e medindo mínimo achêgo, que o animal, ao parecer, sabia e estimava. Desde um dia, sua mulher notara isso, com o seu belo modo abaianado — o rir um pouco rouco, não forte mas abrindo franqueza quase de homem, se bem que sem perder o quente colorido, qual, que é do riso de mulher muito mulher: que não se separa de todo da pessoa, antes parece chamar tudo para dentro de si. Soropita tomara o reparo como um gabo; e se fazia feliz. Nem dado a sentir o frio do metal da espora, mas entendendo que o toque da bota do cavaleiro lhe segredasse um sussurro, o cavalo ampliava o passo, sem escorrinhar cócega, sem encolher músculo, ocupando a estrada com sua andadura bem-balanceada, muito macia. Era pelo meio do dia. Saíam de Andrequicé.
Soropita ali viera, na véspera, lá dormira; e agora retornava a casa: num vão, num saco da Serra dos Gerais, sua vertente sossolã. Conhecia de cór o caminho, cada ponto e cada volta, e no comum não punha maior atenção nas coisas de todo tempo: o campo, a concha do céu, o gado nos pastos — os canaviais, o milho maduro — o nhenhar alto de um gavião — os longos resmungos da jurití jururú — a mata preta de um capão velho — os papagaios que passam no mole e batido voo silencioso — um morro azul depois de morros verdes — o papelão pardo dos marimbondos pendurado dum galho, no cerrado — as borboletas que são indecisos pedacinhos brancos piscando-se — o roxoxol de poente ou oriente — o deslim de um riacho. Só cismoso, ia entrado em si, em meio-sonhada ruminação. Sem dela precisar de desentreter-se, amparava o cavalo com firmeza de rédea, nas descidas, governando-o nos trechos de fofo chão arenoso, e bambeando para ceder à vontade do animal, ladeira acima, ou nos embrejados e estivados, e naquelas passagens sobre clara pedra escorregosa, que as ferraduras gastam em mil anos. Sua alma, sua calma, Soropita fluía rígido num devaneio, uniforme.
Por contra, porém, quando picavam súbitos bruscos incidentes — o bugiar disso-disto de um saguí, um paspalhar de perdiz, o guincho subinte de um rato-do-mato, a corrida de uma preá arrepiando em linha reta o capim, o suasso de asas de um urubú peneirante ou o perpassar de sua larga sombra, o devoo de um galo-do-campo de árvore alta para árvore baixa, a machadada inicial de um picapau-carpinteiro, o esfuzío das grandes vespas vagantes, o estalado truz de um beija-flor em relampejo — e Soropita transmitia ao animal, pelo freio, um aviso nervoso, enquanto sua outra mão se acostumara a buscar a cintura, onde se acomodavam juntos a pistola automática de nove tiros e o revólver oxidado, cano curto, que não raro ele transferia para o bolso do paletó. No coldre, tinha ainda um niquelado, cano longo, com seis balas no tambor. Soropita confiava neles, mesmo não explicando a rapidez com que, em caso de ufa, sabiam disparar, simultâneas, essas armas, que ele jamais largava de si.
Vez a vez, esbarrava, e atentava para a farfa da folhagem, esperando, vigiador, até que se esclarecesse o rebulir com que a movera algum bicho. Seus olhos eram mais que bons. E melhor seu olfato: de meio quilômetro, vindo o vento, capturava o começo do florir do bate-caixa, em seu adêjo de perfume tranquilo, separando-o do da flor do pequí, que cheirava a um nôjo gordacento; e, mesmo com esta última ainda encaracolada em botão, Soropita o podia. Também poderia vendar-se e, à cega, acertar de dizer em que lugar se achava, até pelo rumor de pisadas do cavalo, pelo tinir, em que pedras, dos rompões das ferraduras. Nessas direções cruzava, habitual: muita semana, vinha e ia até duas vezes. Durante a mocidade afeito a estar sempre viajando distâncias, com boiadas e tropas, agora que se fixara ali nos Gerais o espírito e o corpo agradeciam o bem daquelas pequenas chegadas a Andrequicé, para comprar, conversar e saber. Do povoado do Ão, ou dos sítios perto, alguém precisava urgente de querer vir — segunda, quarta e sexta — por escutar a novela do rádio. Ouvia, aprendia-a, guardava na ideia, e, retornado ao Ão, no dia seguinte, a repetia aos outros. Mais exato ainda era dizer a continuação ao Fraquilim Meimeio, contador, que floreava e encorpava os capítulos, quanto se quisesse: adiante quase cada pessôa saía recontando, a divulga daquelas estórias do rádio se espraiava, descia a outra aba da serra, ia à beira do rio, e, boca e boca, para o lado de lá do São Francisco se afundava, até em sertões.
Soropita pousava em Andrequicé na casa de Jõe Aguial, que se mudara para o Ão mas conservava aquela moradia ali, desocupada constantemente. Soropita lá deixava guardada sua rede. Sobre o seguro: casa antiga, mas de bôas portas, que se fechavam com tranca, tramela e chave. Tinha uns buracos, disfarçados — agulheiros, torneiras e portilhas — nos tremós e debaixo das janelas, por onde se pingar para fora o bico do revólver. Se, de noite, muitos a assaltassem, havia escape pelos quatro lados, a porta-da-cozinha dando para o bem sabido de um bamburral, que corria até à estrada. Tinha ganchos em todos os cômodos, num lugar diferente cada dia a rede podia se armar. Ainda que, por si, Soropita gostasse mais de dormir em jiráu ou catre. Mesmo com os sonhos: pois, em cama que a sua não fosse, costumeira, amiúde ele sonhava arrastado, quando não um pesadêlo de que pusera a própria cabeça escondida a um canto — depressa carecia de a procurar; e amanhecia de reverso, virado para os pés; de havia algum tempo, era assim.
Doralda, sua mulher, nunca pedira para vir junto. O mimo que alegava: — “Separaçãozinha breve, uma ou outra, meu Bem, é a regra de primor: tu cria saudade de mim, nunca tu desgosta...” Desconfiança dela, sem bases. Quisesse o acompanhar, ele fazia prazer. Todos no Andrequicé a obsequiavam, mostravam-lhe muito apreço, falavam antenome: “Dona Doralda”. Doralda era formoso, bom apelativo. Uma criancice ela caprichar: — “Bem, por que tu não me trata igual minha mãe me chamava, de Dola?” Dizia tudo alegre — aquela voz livre, firme, clara, como por aí só as moças de Curvelo é que têm. O outro apelido — Dadã — ela nunca lembrava; e o nome que lhe davam também, quando ele a conheceu, de Sucena, era poesias desmanchadas no passado, um passado que, se a gente auxiliar, até Deus mesmo esquece.
Soropita na baixada preferia esperdiçar tempo, tirando ancha volta em arco, para evitar o brejo de barro preto, de onde o ansiava o cheiro estragado de folhas se esfiapando, de água pôdre, choca, com bichos gosmentos, filhotes de sapos, frias coisas vivas mas sem sangue nenhum, agarradas umas nas outras, que deve de haver, nas locas, entre lama, por esconsos. A nessas viagens, no chapadão, ou quando os riachos cortam, muita vez se tinha de matar a sede com águas quase assim, deitadas em feio como um veneno — por não sermos senhores de nossas ações. Mal mas o pior, que podia ser, de fim de um, era se morrer atolado naquele ascoso.
Doralda dizia que não, não vinha ao Andrequicé: que aluir dali, do Ão, só para cidade grande, Pirapora, Belorizonte, Corinto, com cinema, bom comércio, o chechego do trem-de-ferro. O resto era roça. — “Mas aqui eu estou de minha, Bem, estou contente, tu é companhia...” Falava sincera, não formava dúvida. A gente podia fiar por isso, o rompante certo, o riso rente, o modo despachado. Doralda não tinha os manejos de acanhamento das mulheres de daqui, que toda hora estão ocultando a cara para um lado ou espiando no chão. Sertaneja do Norte, encarava as pessoas, falava rasgado, já tinindo de perto da Bahia; nunca dizia “não” com um muxoxo. Ralhava que ele tomasse muito cuidado consigo, pelos altos, pelos matos. — “Tomo não, Bem. Um dia sucuriú me come...” — ele caçoava em responder. Doralda então ficava brincando de olhar para ele sem piscar, jogando ao sério: os olhos marrons, molhavam lume os olhos. Nesses brejos maiores de vereda, e nos corguinhos e lagôas muito limpas, sucurí mora. Às vezes ela se embalança, amolecida, grossa, ao embate da água, feito escura linguiça presa pelas pontas, ou sobeja serena no chão do fundo, como uma sombra; tem quem escute, em certas épocas, o chamado dela — um zumbo cheio, um ronco de porco; mas se esconde é mais, sob as folhas largas, raro um pode ver quando ela sai do pôço, recolhendo sol, em tempo bom.
Nem tudo era perigo: fazia um barulhinho, o cavalo mesmo tirava de banda, entortado, as orêlhas em amurcho, encostadas no pescoço — conhecia seu cavaleiro. E não era azo de coisa. Só somente uma pêga, que veio dar na ramada, espreguiçava as asas, pousou no gonçalo-alves, encarquilhando a cauda. Custou a se dizer, e piou pouco. — “Quase pássaro nenhum canta agora, na seca...” O cavalo era de fiança: um aviso bastava com ele antes se falar — e a gente podia desfechar tiro, a bala passando entre as orêlhas dele, que esperava, quieto, testalto, calmo, nem fitando. O braço de Soropita esbarrara num dos alforjes; estava bem abotoado, afivelado em seguro. Ali dentro, trazia para a mulher o presente que a ele mais prazia: um sabonete cheiroso, sabonete fino, cor-de-rosa.
Do cheiro, mesmo, de Doralda, ele gostava por demais, um cheiro que ao breve lembrava sassafrás, a rosa mogorim e palha de milho viçoso; e que se pegava, só assim, no lençol, no cabeção, no vestido, nos travesseiros. Seu pescoço cheirava a menino novo. Ela punha casca-boa e manjericão-miúdo na roupa lavada, para exalar, e gastava vidro de perfume. Soropita achava que tanto perfume não devia de se pôr, desfazia o próprio daquela frescura. Mas ele gostava de se lembrar, devagarinho, que estava trazendo o sabonete. Doralda, ainda mal enxugada do banho, deitada no meio da cama. Tinha ouvido contar da casca da cabriúva: um almíscar tão forte, bebente, encantável, que os bichos, galheiro, porco-do-mato, onça, vinham todos se esfregar na árvore, no pé... Doralda nunca o contrariava, queria que ele gostasse mesmo de seu cheiro: — “Sou sua mulher, Bem, sua mulherzinha sozinha...” A cada palavra dela, seu coração se saía.
Ela tinha sempre um tento de estar perto, quando ele chegava de volta em casa. Não na porta-da-rua, nem em janela; mas também não se encafuava, na cozinha ou em quintal, nem se desmazelava, como outras, mesmo pouquinho tempo depois de casadas, costumavam ser. Que era dona-de-casa, quem referia era ele, que jurava. Comida gostosa, apimentada, temperos fortes. Para a saúde, vai ver não fosse bom, era reimoso; mas a mulher se ria, perto dela não se podia pensar em coisas mofinas. Achava fio de cabelo dela, não tinha repugnância, não se importava. — “Bem: eu cuspisse dentro da sopa, você tinha escrúpulo de tomar? Você gosta de mim de todo jeito?” Asco nenhum. O cuspe dela, no beijar, tinha pepego, regosto bom, meio salobro, cheiro de focinho de bezerro, de horta, cheiro como cresce redonda a erva-cidreira. Antes nem depois, Soropita nunca tinha beijado em boca outra mulher nenhuma. Nem comer comida babujada. Voltar para casa, as horas correndo bem, era o melhor que havia.
Guimarães Rosa, in Noites do sertão

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