quinta-feira, 25 de maio de 2017

Brincando com o desconhecido...

Na minha infância nasce uma infância ardente como o álcool.
Eu me assentava nos caminhos da noite.
Escutava o discurso das estrelas e o da árvore.
Agora a indiferença neva a noite na minha alma.
(Vincent Huidobro, citado por Bachelard).

Deixei a roça sem saudades. A saudade só veio muito mais tarde, com a velhice. A velhice é quando se sai em busca do tempo perdido... Escrevo para tranquilizar a saudade. Ao escrever, vivo de novo a infância que vivi. Mas nem sei se vivi...
Não sei se a infância da minha memória é a infância acontecida ou um devaneio poético, a infância que eu gostaria de ter vivido. Talvez ao escrever, eu, velho, esteja vivendo agora o que nunca vivi... Sonhar é uma forma de viver.
Não sofri com a mudança. Parafraseando Alberto Caeiro, digo que as crianças são de novo nascidas a cada momento para a eterna novidade do mundo: mundo sempre novo, diferente, surpreendente, fantástico, assombroso, incrível, desafiante. “Decifra-me ou te devoro!” E as crianças, como Édipo diante do desafio da Esfinge, se põem a decifrar o mundo...
Não me importava que a casa para onde nos mudamos fosse uma caixa de fósforos. Eu não sabia que ela era uma caixa de fósforos. Menino, ainda não fora picado pela maldição da comparação. Muito mais importante era o fato de que ela se encontrava aos fundos de um Castelo Encantado. Ele ficava no alto de uma colina e era maior do que tudo o que eu jamais vira. Sempre fechado e misterioso, dos seus pátios vazios se via um lago azul imenso, coisa que eu desconhecia porque na roça eu só conhecera riachinhos e lagoinhas. Eu gostava de ver os marrequinhos que nadavam... Meu pai me levou a visitá-lo por dentro, graças à amizade que fizera com o guarda do Castelo. Salas imensas, empoeiradas, silenciosas, escuras, os móveis cobertos com lençóis, lustres de cristal, veludos vermelhos e verdes. Todas as coisas dormiam. Era assim no Castelo onde dormia a Bela Adormecida...
Mais tarde me explicaram, e com a explicação o Castelo perdeu os seus mistérios. Porque explicar, se é que não sabem, significa “tirar as dobras, tornar liso, (como a passadeira que com o ferro passa a roupa), estender o que estava enrolado”. As explicações acabam com as sombras e com o encanto. Havia sido um cassino. Fora aberto por uma noite, uma única noite. Depois, por ordens superiores que ignoro, fora fechado. Como cassino nunca mais existiu. Hoje nele funcionam repartições da prefeitura. Estive lá. Os funcionários não sabem que ali, há muitos anos, existiu um Castelo Encantado.
Eu sabia que acabara de entrar num outro mundo, desconhecido. O desconhecido não me dava medo. Ao contrário. Era uma sensação de espaço e liberdade, o que me enchia de alegria. Eu tive uma cadela que, quando ainda menina, repentinamente, sem nenhuma razão especial, se punha a correr e a saltar como doida, em círculos, pela própria alegria de correr. Sim, também os animais sentem alegria! E eu me vejo, menino de seis anos, como a minha cadela menina, correndo de alegria, sem nenhuma razão, entrando pela porta da frente da casa, atravessando o alpendre, a sala, saindo pela porta da cozinha, voltando para a frente da casa, para fazer tudo de novo, em círculos...
As evidências da novidade do mundo estavam na minha casa. A primeira era a maravilha das lâmpadas elétricas que pendiam do teto ao fim de um fio coberto de cocôs de moscas. Mas que são cocôs de moscas diante de assombro? Bastava girar uma orelha no bocal para que a lâmpada se acendesse! Adeus, lamparinas! Adeus, cheiro de querosene! Adeus, fuligem negra! Na roça todos os objetos eram transparentes. Bastava olhar para eles para compreender sua lógica, os mecanismos do seu funcionamento. Na roça o mundo e a vida eram misteriosos, mas os objetos não. Uma lamparina, nada mais simples: um recipiente de vidro ou lata, querosene, pavio, fogo, luz. Era fácil fazer uma lamparina. Mas a lâmpada elétrica pertencia a um novo mundo onde moravam objetos misteriosos. Quem pode fazer uma lâmpada? Que coisa é essa chamada eletricidade, que ninguém vê e que faz a lâmpada acender? A outra evidência era a privada. Bastava puxar uma cordinha para que acontecesse uma descarga de água que fazia desaparecer os cocôs...
Meu pai era uma criança. As crianças verdadeiramente crianças ficam felizes por pouca coisa. E isso porque elas possuem o poder mágico de transformar aquilo que é nada em algo que é muito. Pelo poder da imaginação um cabo de vassoura se transforma num cavalo e uma caixa de sapatos vazia amarrada a um barbante é um carrinho. Pois assim era o meu pai: ele sabia transformar nadas em coisas boas. Mesa a gente não tinha. Meu pai foi a um armazém, arranjou um caixote grande de madeira, trouxe-o para casa, tirou uma porta das dobradiças, pregou a porta sobre o caixote – e eis a nossa mesa! Infelizmente a mesa apresentava um problema devido à sua construção: ela funcionava como uma gangorra. Quem estivesse assentado à cabeceira, se se apoiasse sobre ela, corria o risco de receber uma terrina de feijão na testa. Guarda-roupas, nem pensar! Mas meu pai não se perturbou. Juntou uns cabos de vassoura abandonados, fez buracos nos ângulos das paredes e neles encaixou os cabos de vassoura que assim se transformaram nos nossos guarda-roupas onde pendurávamos nossas roupas. Também, eram tão poucas...
Um dia o pai chegou de uma de suas viagens com uma surpresa: uma caixa de doce de laranja de cinco quilos ficara encalhada, e assim ele a trazia como presente. Foi uma felicidade! Nós comeríamos sobremesa! No primeiro dia foi uma festa. Também no segundo, no terceiro e no quarto. Acontece, porém, que cinco quilos de doce de laranja é muito doce. Por mais que a comêssemos, a laranjada não diminuía de tamanho. Transcorridas duas semanas, já não podíamos ver a caixa que voltava sempre para a mesa. E, sendo pobres, não podíamos nos entregar ao luxo de jogar fora a laranjada. O que queríamos não era um outro doce. Queríamos era parar de comer a laranjada... Levou muito tempo para que ela terminasse. Mas deixou um trauma. Até hoje o corpo estremece ao ouvir falar de laranjada…
Rubem Alves, in Se eu pudesse viver minha vida novamente

Nenhum comentário:

Postar um comentário