sábado, 20 de maio de 2017

Binóculos

No apartamento fronteiro instalou-se há dias novo morador. Ele assesta o binóculo em minha direção. Percebendo que estava sendo observado, tirei da gaveta o meu binóculo e por minha vez pus-me a observá-lo.
Nossos olhares se cruzaram. Imóveis, cada um lia no rosto do outro alguma coisa que lhe interessava saber. Ou tentava lê-la, mas, sentindo ambos que eram objeto de curiosidade mútua, ele procurava disfarçar o que tivesse de revelável no rosto, e eu fazia o mesmo, de sorte que, quanto mais nos inspecionávamos pelo olhar, mais realmente nos desconhecíamos.
A contemplação simultânea durou não sei quantos minutos. Era ostensiva e ao mesmo tempo astuciosa, enganadora e denunciadora. Seríamos talvez (ou nos tornaríamos) dois inimigos, dois companheiros, dois irmãos, dois críticos implacáveis. Ele necessitava de mim, e eu dele, nessa procura do que nos faltava a ambos. Cheguei a pensar que fôssemos uma só pessoa, desdobrada e reunificada pelos binóculos. Nesse caso, estaria eu procurando ver no rosto alheio o meu verdadeiro rosto e, quem sabe, aquilo que meu rosto esconde de si mesmo. E, do outro lado da rua, meu rosto desdobrado fazia a mesma coisa.
Nisso caiu uma chuva forte, que embaciou as vidraças atrás das quais nos protegemos, e nossos binóculos e rostos tornaram-se praticamente liquefeitos, cessando a pesquisa.
Não tenho visto mais o novo morador, e não sei onde botei esse binóculo.
Carlos Drummond de Andrade, in Contos plausíveis

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