No
apartamento fronteiro instalou-se há dias novo morador. Ele assesta
o binóculo em minha direção. Percebendo que estava sendo
observado, tirei da gaveta o meu binóculo e por minha vez pus-me a
observá-lo.
Nossos
olhares se cruzaram. Imóveis, cada um lia no rosto do outro alguma
coisa que lhe interessava saber. Ou tentava lê-la, mas, sentindo
ambos que eram objeto de curiosidade mútua, ele procurava disfarçar
o que tivesse de revelável no rosto, e eu fazia o mesmo, de sorte
que, quanto mais nos inspecionávamos pelo olhar, mais realmente nos
desconhecíamos.
A
contemplação simultânea durou não sei quantos minutos. Era
ostensiva e ao mesmo tempo astuciosa, enganadora e denunciadora.
Seríamos talvez (ou nos tornaríamos) dois inimigos, dois
companheiros, dois irmãos, dois críticos implacáveis. Ele
necessitava de mim, e eu dele, nessa procura do que nos faltava a
ambos. Cheguei a pensar que fôssemos uma só pessoa, desdobrada e
reunificada pelos binóculos. Nesse caso, estaria eu procurando ver
no rosto alheio o meu verdadeiro rosto e, quem sabe, aquilo que meu
rosto esconde de si mesmo. E, do outro lado da rua, meu rosto
desdobrado fazia a mesma coisa.
Nisso
caiu uma chuva forte, que embaciou as vidraças atrás das quais nos
protegemos, e nossos binóculos e rostos tornaram-se praticamente
liquefeitos, cessando a pesquisa.
Não
tenho visto mais o novo morador, e não sei onde botei esse binóculo.
Carlos
Drummond de Andrade, in Contos plausíveis
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