domingo, 7 de maio de 2017

Ana Maria

Fiquei com pena de meu amigo porque depois de amanhã ele não estará no Rio. Penso nele e em sua mulher, que passarão o dia em país estrangeiro. Meu amigo estuda sempre — desde que o conheço, não faz outra coisa, estudo nada egoístico, visando à saúde dos outros — e para estudar se ausentou mais uma vez do Brasil.
Vai ser difícil para o casal passar o sábado em Pittsburg. Não sentirão propriamente tristeza, isso não. Será mesmo alegria o que eles irão sentir, mas alegria confinada no espaço, longe de seu objeto. De manhã cedo irão à missa na igreja do bairro (pois tenho amigos religiosos, é uma das minhas armas secretas), mesmo que isso force meu amigo a matar a primeira aula, e note-se que ele é o rigor e o escrúpulo em pessoa. Depois, não sei se tentarão telefonar para o Rio: custa uma pequena fortuna, a bolsa de estudos não deve permitir esses luxos. Mas estou certo de que meu amigo e sua mulher conversarão o dia todo com alguém aqui do Rio.
Conversarão da maneira mais delicada e menos fatigante de todas; sem perguntas; sem respostas; num desenrolar de pensamentos e lembranças que unifica os planos do tempo; num formar e combinar imagens que nenhum diretor cinematográfico jamais conseguiu nem conseguirá tão perfeito. Eles vão fazer outras coisas durante o dia, coisas de obrigação, mas serão feitas com um toque especial, imperceptível aos americanos que os rodearem. Pode ser que algum americano mais sutil sinta a diferença, e então meu amigo lhe dirá com ar de bobo, esse ar que acompanha a felicidade profunda, só indiretamente manifestável: “Ana Maria faz quinze anos hoje”.
Faz quinze anos Ana Maria. O mundo em redor não se abala com o acontecimento; nem por isso é menor sua importância. Kruchev, Lumumba, Fidel, Sartre, Emmanuele Riva, todos vós que ocupais hoje a atenção da gente, permiti que vos afaste de cogitações para dar lugar a Ana Maria, sozinha, luminosa e quinzeaneira. Estava brincando de catar caramujo no jardim, e voltou para casa com as mãos e os cabelos sujos de terra; era, também ela, bichinho da natureza; hoje é broto florindo no vestido decotado, sem mangas, com enfeite de bordado inglês.
Se o mundo não se renovou em larga escala, se as injustiças, a opressão e a miséria ainda não foram eliminadas da face da Terra, em compensação a vida provou em Ana Maria, mais uma vez, o seu poder de transformação e sua pura graça de vida. Quem sabe se não será partindo desse fenômeno cotidiano e extraordinário da elaboração da adolescência, que chegaremos a entender melhor como as coisas se modificam em torno de nós, a aceitar melhor o imprevisto dessas modificações?
Já não estou com pena dos pais de Ana Maria, distantes da filha. A adolescência espalha-se e comunica-se como perfume. E em Pittsburg eles a têm bem perto de si, como se estivessem no Rio.
Carlos Drummond de Andrade, in A bolsa & a vida

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