Fiquei
com pena de meu amigo porque depois de amanhã ele não estará no
Rio. Penso nele e em sua mulher, que passarão o dia em país
estrangeiro. Meu amigo estuda sempre — desde que o conheço, não
faz outra coisa, estudo nada egoístico, visando à saúde dos outros
— e para estudar se ausentou mais uma vez do Brasil.
Vai
ser difícil para o casal passar o sábado em Pittsburg. Não
sentirão propriamente tristeza, isso não. Será mesmo alegria o que
eles irão sentir, mas alegria confinada no espaço, longe de seu
objeto. De manhã cedo irão à missa na igreja do bairro (pois tenho
amigos religiosos, é uma das minhas armas secretas), mesmo que isso
force meu amigo a matar a primeira aula, e note-se que ele é o rigor
e o escrúpulo em pessoa. Depois, não sei se tentarão telefonar
para o Rio: custa uma pequena fortuna, a bolsa de estudos não deve
permitir esses luxos. Mas estou certo de que meu amigo e sua mulher
conversarão o dia todo com alguém aqui do Rio.
Conversarão
da maneira mais delicada e menos fatigante de todas; sem perguntas;
sem respostas; num desenrolar de pensamentos e lembranças que
unifica os planos do tempo; num formar e combinar imagens que nenhum
diretor cinematográfico jamais conseguiu nem conseguirá tão
perfeito. Eles vão fazer outras coisas durante o dia, coisas de
obrigação, mas serão feitas com um toque especial, imperceptível
aos americanos que os rodearem. Pode ser que algum americano mais
sutil sinta a diferença, e então meu amigo lhe dirá com ar de
bobo, esse ar que acompanha a felicidade profunda, só indiretamente
manifestável: “Ana Maria faz quinze anos hoje”.
Faz
quinze anos Ana Maria. O mundo em redor não se abala com o
acontecimento; nem por isso é menor sua importância. Kruchev,
Lumumba, Fidel, Sartre, Emmanuele Riva, todos vós que ocupais hoje a
atenção da gente, permiti que vos afaste de cogitações para dar
lugar a Ana Maria, sozinha, luminosa e quinzeaneira. Estava brincando
de catar caramujo no jardim, e voltou para casa com as mãos e os
cabelos sujos de terra; era, também ela, bichinho da natureza; hoje
é broto florindo no vestido decotado, sem mangas, com enfeite de
bordado inglês.
Se
o mundo não se renovou em larga escala, se as injustiças, a
opressão e a miséria ainda não foram eliminadas da face da Terra,
em compensação a vida provou em Ana Maria, mais uma vez, o seu
poder de transformação e sua pura graça de vida. Quem sabe se não
será partindo desse fenômeno cotidiano e extraordinário da
elaboração da adolescência, que chegaremos a entender melhor como
as coisas se modificam em torno de nós, a aceitar melhor o
imprevisto dessas modificações?
Já
não estou com pena dos pais de Ana Maria, distantes da filha. A
adolescência espalha-se e comunica-se como perfume. E em Pittsburg
eles a têm bem perto de si, como se estivessem no Rio.
Carlos Drummond de Andrade, in A
bolsa & a vida
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