No
meu último ano de escola, no Colégio Nacional de Buenos Aires, um
professor cujo nome não me importo de ter esquecido leu para nossa
turma o seguinte: Tudo
que as alegorias pretendem dizer é somente que o incompreensível é
incompreensível, e isso já sabemos. Mas os problemas com que
lutamos diariamente são uma coisa diferente.
Sobre
esse assunto, um homem perguntou certa vez: “Por que tanta
teimosia? Se apenas seguissem as alegorias, vocês também se
tornariam alegorias e dessa forma resolveriam todos os seus problemas
cotidianos”.
Outro
disse: “Aposto que isso também é uma alegoria”.
O
primeiro disse: “Você ganhou”.
O
segundo disse: “Mas ai de mim, só alegoricamente!”.
O
primeiro disse: “Não, na vida real. Alegoricamente, você perdeu”.
Esse
texto curto, que nosso professor jamais tentou explicar,
perturbou-nos e provocou muitas discussões no enfumaçado café La
Puerto Rico, logo dobrando a esquina da escola. Franz Kafka
escreveu-o em Praga, em 1922, dois anos antes de sua morte.
Passados
45 anos, ele nos deixava, adolescentes inquisitivos, com o sentimento
inquietante de que qualquer interpretação, qualquer conclusão,
qualquer sentimento de ter “compreendido” a ele e suas alegorias
estavam errados. O que aquelas poucas linhas sugeriam não era apenas
que cada texto pode ser lido como uma alegoria (e aqui a distinção
entre “alegoria” e o conceito menos dogmático de “símbolo”
fica obscurecida), revelando elementos de fora do próprio texto, mas
que cada leitura é em si mesma alegórica, objeto de outras
leituras. Sem conhecer o critico Paul de Man, para quem “as
narrativas alegóricas contam a história do fracasso
de ler”,
estávamos de acordo com ele em que nenhuma leitura pode jamais ser
final. Com uma diferença importante: o que De Man considerava um
fracasso anárquico, nós víamos como uma prova de nossa liberdade
enquanto leitores. Se não havia algo como “a última palavra” na
leitura, então nenhuma autoridade poderia nos impor uma leitura
“correta”. Com o tempo, percebemos que algumas leituras eram
melhores que outras - mais informadas, mais lúcidas, mais
desafiadoras, mais prazerosas, mais perturbadoras. Mas o
recém-descoberto sentimento de liberdade jamais nos abandonou e
ainda agora, deleitando-me com um livro que certo resenhista condenou
ou deixando de lado outra obra que recebeu muitos elogios, acho que
posso recordar vivamente aquele seu momento rebelde.
Sócrates
afirmava que somente o que o leitor já conhece pode ganhar vida com
uma leitura, e, para ele, o conhecimento não pode ser adquirido
através de letras mortas. Os primeiros eruditos medievais buscavam
na leitura uma infinidade de vozes que, em última instância,
ecoavam uma única voz: o logos
de Deus. Para os humanistas da Idade Média tardia, o texto
(incluindo a leitura que fez Platão do argumento socrático) e os
sucessivos comentários das diversas gerações de leitores
implicavam tacitamente que era possível haver não apenas uma, mas
um número quase infinito de leituras, todas alimentando-se
reciprocamente. Nossa leitura em sala de aula do discurso de Lísias
recebeu a contribuição de séculos dos quais Lísias jamais
suspeitou – assim como não poderia fazer ideia do entusiasmo de
Fedro ou dos comentários astuciosos de Sócrates. O livro na minha
estante não me conhece até que eu o abra, e no entanto tenho
certeza de que ele se dirige a mim - a mim e a cada leitor - pelo
nome; está à espera de nossos comentários e opiniões. Eu estou
pressuposto em Platão, assim como cada livro me pressupõe, mesmo
aqueles que nunca lerei.
Por
volta de 1316, em uma carta famosa ao vigário imperial Can Grande
del a Scala, Dante sustentou que um texto tem pelo menos duas
leituras, “pois obtemos um sentido da letra dele e outro daquilo
que a letra significa; a primeira é chamada de literal,
a outra de alegórica
ou
mística”.
Dante prossegue sugerindo que o sentido alegórico compreende três
outras leituras. Apresentando como exemplo o Verso bíblico “Quando
Israel saiu do Egito e a casa de Jacó se apartou de um povo bárbaro,
Judá tornou-se o santuário do Senhor e Israel o seu reino”, Dante
explica: “Se olharmos apenas
a
letra,
o que é posto diante de nós é o êxodo dos filhos de Israel no
tempo de Moisés; se a alegoria,
nossa redenção forjada por Cristo; se o sentido analógico,
vemos a conversão da alma do sofrimento e da desgraça do pecado
para o estado de graça; se o anagógico,
mostra-senos a partida da alma santa da servidão dessa corrupção
para a liberdade da glória eterna. E embora esses significados
místicos recebam vários nomes, todos podem ser chamados em geral de
alegóricos,
uma vez que diferem do literal e do histórico”. São todas
leituras possíveis. Alguns leitores podem achar uma ou várias delas
falsas; talvez desconfiem de uma leitura “histórica”, se não
conhecerem o contexto do trecho; podem fazer objeções à leitura
“alegórica”, considerando a referência a Cristo anacrônica;
talvez julguem as leituras “analógica” (por meio de analogias) e
“anagógica” (mediante interpretações bíblicas) fantasiosas ou
forçadas demais. Mesmo a leitura “literal” pode ser suspeita. O
que significa exatamente “saiu”? Ou “casa”? Ou “reino”?
Parece que mesmo para ler no nível mais superficial o leitor precisa
de informações sobre a criação do texto, o pano de fundo
histórico, o vocabulário especializado e até sobre a mais
misteriosa das coisas, o que santo Tomás de Aquino chamava de quem
auctor
intendit,
a intenção do autor. Contudo, desde que leitor e texto compartilhem
uma linguagem comum, qualquer leitor pode descobrir algum sentido em
qualquer texto: dadaísta. horóscopos, poesia hermética, manuais de
computador e até na linguagem bombástica da política.
Alberto
Manguel,
in Uma
história da leitura
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