Muitas
vezes, muitas mesmo, as palavras me traem. Nessas horas, luto para
dizer uma coisa, mas digo outra. Foi o que me aconteceu, na semana
passada, em uma mesa literária em São Paulo. Trocava ideias com F.,
uma intelectual que adotei como mestre. Nem sempre compartilhamos os
mesmos pensamentos – mas um mestre não é um professor.
Professores nos levam a repetir e adotar suas ideias. Mestres, ao
contrário, nos incitam a renegá-las, para formar, assim, nossa
própria posição.
Nesse
dia, eu disse a F. que, cada vez mais, me esforço para abdicar de
minhas habilidades intelectuais e, desarmado, ler como um leitor
comum. Ela protestou: “Mas você não é um leitor comum e
justamente por isso está aqui”. Era verdade. Alguma diferença me
levava a ocupar um assento naquela mesa de debates literários.
Talvez a expressão que busco não seja “leitor comum”, ideia que
remete à mediania e à preguiça. Mas qual seria?
No
voo de volta para Curitiba, a sorte me jogou nas mãos a seleção
dos melhores poemas de Walmir Ayala organizada por Marco Lucchesi
para a Global Editora (Walmir Ayala, Coleção Melhores
Poemas). Respostas vêm de onde menos esperamos. Na página 91, no
poema “O mundo interior” (que Lucchesi colheu em Estado de choque
, livro que Ayala publicou em 1980), encontro palavras mais adequadas
para dizer o que tentei dizer.
Explico.
Walmir Ayala (1933-1991), poeta, romancista e crítico de arte, é um
escritor esquecido. Seu poema é simples (é comum). Nem chega a ser
um dos melhores poemas de Ayala – mas o que isso importa? Enquanto
o avião sacoleja, leio e releio os versos que dizem, pela via
secreta das imagens, o que eu não consigo dizer. Detenho-me nos dois
primeiros versos. “O mundo interior já não é/a área nebulosa da
nossa mais alta privacidade”. Versos sem brilho, comuns, quase
banais, mas que me deixam – como o livro em que Lucchesi os colheu
– em estado de choque. Neles encontro as palavras que me faltavam.
Eles
ampliam uma ideia de Paul Valéry a que sempre retorno. Ela está em
Monsieur Teste, ensaio de 1919, livro que nunca paro de reler.
Aconselha Valéry: “Enfastiado de ter razão, de fazer o que tem
sucesso, da eficiência dos procedimentos, tentar outra coisa”. É
o que procuro. Na aventura de ler, mais que a eficiência e o método,
vale o estupor. Volto a Ayala, que, em outro poema, me ajuda ainda
mais: “Para cada pensamento/ Um astro estremece e se destina”. A
leitura é uma experiência íntima e exclusiva. Muitas teorias se
oferecem como armas para a aproximação de um livro. Mas um leitor
é, antes de tudo, alguém atravessado – fulminado – pela palavra
do outro. São poucos os que, como F., com sua espantosa lucidez e
sua coragem intelectual, conseguem se distanciar e ler como se não
estivessem ali.
Eu,
ao contrário, leio de outro lugar – nem melhor nem pior, apenas
outro. Os versos de Ayala reforçam em mim a ideia (contrária às de
F., mas não excludente) de que a experiência da leitura transcorre
entre sombras. A leitura é, como diz a canadense Claire Varin a
respeito de Clarice Lispector, uma aventura “telepática”.
Palavra antiga, cercada de superstições e de suspeitas, mas não
encontro outra melhor. A conexão entre um livro e seu leitor é uma
experiência noturna; não transcorre no terreno da clareza ou da
habilidade. Sem desarmar-se, ninguém chega a ler. A leitura é (como
se diz dos telepatas e dos hipnotizadores) um exercício de
submissão. Um amigo me sopra, em boa hora, uma frase de Gandhi: “O
único tirano que aceito nesse mundo é a pequena voz silenciosa que
há dentro de mim”. Agarrados a essa voz, lemos.
No
mesmo dia em que estive com F., ouvi Fernanda Montenegro dizer
(interpretar) uma crônica de Clarice Lispector. Chama-se “Encarnação
involuntária”, e, embora não trate de literatura, veio em meu
socorro. Relata Clarice que, às vezes, quando vê uma pessoa, sem
decidir por isso, nela se encarna. Um dia, em um avião, viu uma
missionária – e logo começou a andar com passos de “santa
leiga”. Outra vez, deparou com uma prostituta – e, em um segundo,
fumava com os olhos entrefechados para um homem. A encarnação
voluntária é uma maneira de “ler” o outro, “sendo” o outro.
Via cega, em que abdicamos do saber, para experimentar o susto.
Está,
outra vez, nos versos de Walmir Ayala: “Eu me pergunto pela noite/
mãe do terror e da fantasia/ nutriz do sobressalto”. É dele,
ainda, a ideia (que parece irracional e temerária) de que a luz
permanente queima como um inferno. Poetas (Julian Fucks mostrou isto)
são cegos. Também o leitor: só em uma atmosfera noturna,
renunciando a nossas melhores ideias e convicções, penetramos, de
fato, em um livro. Pelo menos nós, “leitores comuns”, como
tentei dizer. Leitores que contam apenas consigo e com mais ninguém.
Via
torta, mas potente, para um outro tipo de lucidez. Alerta-nos Clarice
que só depois de “desencarnar” das pessoas, ela consegue, enfim,
ter uma vida própria. Mesmo dessa “vida própria”, porém, ela
suspeita. “Vida que, quem sabe, talvez nunca tenha sido própria,
senão no momento de nascer”, diz. Quando se livra das sucessivas
encarnações, é ainda um espectro (seu próprio espectro) que nela
se encarna. “Meu fantasma se incorpora plenamente em mim.” Das
fantasias alheias, chegamos às fantasias (fantasmas) próprias.
Nunca conseguimos emergir. O eu é um livro que escrevemos sem saber
que escrevemos, e até sem precisar escrever. Nas frestas dessa
ficção íntima, em súbitos clarões, despontam breves fachos de
lucidez – que só pessoas especiais como F. conseguem acessar.
Walmir
Ayala não foi um grande poeta, mas só um crítico habilidoso que se
agarrou à poesia para descansar um pouco de si. Escrevia versos,
como ele mesmo nos diz, “ansiando pela noite”. Ocorre-me agora
uma ideia penosa de Truman Capote, que li num prefácio de Ivan Lessa
e que fala não só dos escritores, mas também dos leitores: “Estou
aqui sozinho na escuridão de minha loucura, sozinho com meu baralho
– e, é claro, o chicote que Deus me deu”.
José
Castello, in Sábados inquietos
Nenhum comentário:
Postar um comentário