sábado, 6 de maio de 2017

A perícia da noite

Muitas vezes, muitas mesmo, as palavras me traem. Nessas horas, luto para dizer uma coisa, mas digo outra. Foi o que me aconteceu, na semana passada, em uma mesa literária em São Paulo. Trocava ideias com F., uma intelectual que adotei como mestre. Nem sempre compartilhamos os mesmos pensamentos – mas um mestre não é um professor. Professores nos levam a repetir e adotar suas ideias. Mestres, ao contrário, nos incitam a renegá-las, para formar, assim, nossa própria posição.
Nesse dia, eu disse a F. que, cada vez mais, me esforço para abdicar de minhas habilidades intelectuais e, desarmado, ler como um leitor comum. Ela protestou: “Mas você não é um leitor comum e justamente por isso está aqui”. Era verdade. Alguma diferença me levava a ocupar um assento naquela mesa de debates literários. Talvez a expressão que busco não seja “leitor comum”, ideia que remete à mediania e à preguiça. Mas qual seria?
No voo de volta para Curitiba, a sorte me jogou nas mãos a seleção dos melhores poemas de Walmir Ayala organizada por Marco Lucchesi para a Global Editora (Walmir Ayala, Coleção Melhores Poemas). Respostas vêm de onde menos esperamos. Na página 91, no poema “O mundo interior” (que Lucchesi colheu em Estado de choque , livro que Ayala publicou em 1980), encontro palavras mais adequadas para dizer o que tentei dizer.
Explico. Walmir Ayala (1933-1991), poeta, romancista e crítico de arte, é um escritor esquecido. Seu poema é simples (é comum). Nem chega a ser um dos melhores poemas de Ayala – mas o que isso importa? Enquanto o avião sacoleja, leio e releio os versos que dizem, pela via secreta das imagens, o que eu não consigo dizer. Detenho-me nos dois primeiros versos. “O mundo interior já não é/a área nebulosa da nossa mais alta privacidade”. Versos sem brilho, comuns, quase banais, mas que me deixam – como o livro em que Lucchesi os colheu – em estado de choque. Neles encontro as palavras que me faltavam.
Eles ampliam uma ideia de Paul Valéry a que sempre retorno. Ela está em Monsieur Teste, ensaio de 1919, livro que nunca paro de reler. Aconselha Valéry: “Enfastiado de ter razão, de fazer o que tem sucesso, da eficiência dos procedimentos, tentar outra coisa”. É o que procuro. Na aventura de ler, mais que a eficiência e o método, vale o estupor. Volto a Ayala, que, em outro poema, me ajuda ainda mais: “Para cada pensamento/ Um astro estremece e se destina”. A leitura é uma experiência íntima e exclusiva. Muitas teorias se oferecem como armas para a aproximação de um livro. Mas um leitor é, antes de tudo, alguém atravessado – fulminado – pela palavra do outro. São poucos os que, como F., com sua espantosa lucidez e sua coragem intelectual, conseguem se distanciar e ler como se não estivessem ali.
Eu, ao contrário, leio de outro lugar – nem melhor nem pior, apenas outro. Os versos de Ayala reforçam em mim a ideia (contrária às de F., mas não excludente) de que a experiência da leitura transcorre entre sombras. A leitura é, como diz a canadense Claire Varin a respeito de Clarice Lispector, uma aventura “telepática”. Palavra antiga, cercada de superstições e de suspeitas, mas não encontro outra melhor. A conexão entre um livro e seu leitor é uma experiência noturna; não transcorre no terreno da clareza ou da habilidade. Sem desarmar-se, ninguém chega a ler. A leitura é (como se diz dos telepatas e dos hipnotizadores) um exercício de submissão. Um amigo me sopra, em boa hora, uma frase de Gandhi: “O único tirano que aceito nesse mundo é a pequena voz silenciosa que há dentro de mim”. Agarrados a essa voz, lemos.
No mesmo dia em que estive com F., ouvi Fernanda Montenegro dizer (interpretar) uma crônica de Clarice Lispector. Chama-se “Encarnação involuntária”, e, embora não trate de literatura, veio em meu socorro. Relata Clarice que, às vezes, quando vê uma pessoa, sem decidir por isso, nela se encarna. Um dia, em um avião, viu uma missionária – e logo começou a andar com passos de “santa leiga”. Outra vez, deparou com uma prostituta – e, em um segundo, fumava com os olhos entrefechados para um homem. A encarnação voluntária é uma maneira de “ler” o outro, “sendo” o outro. Via cega, em que abdicamos do saber, para experimentar o susto.
Está, outra vez, nos versos de Walmir Ayala: “Eu me pergunto pela noite/ mãe do terror e da fantasia/ nutriz do sobressalto”. É dele, ainda, a ideia (que parece irracional e temerária) de que a luz permanente queima como um inferno. Poetas (Julian Fucks mostrou isto) são cegos. Também o leitor: só em uma atmosfera noturna, renunciando a nossas melhores ideias e convicções, penetramos, de fato, em um livro. Pelo menos nós, “leitores comuns”, como tentei dizer. Leitores que contam apenas consigo e com mais ninguém.
Via torta, mas potente, para um outro tipo de lucidez. Alerta-nos Clarice que só depois de “desencarnar” das pessoas, ela consegue, enfim, ter uma vida própria. Mesmo dessa “vida própria”, porém, ela suspeita. “Vida que, quem sabe, talvez nunca tenha sido própria, senão no momento de nascer”, diz. Quando se livra das sucessivas encarnações, é ainda um espectro (seu próprio espectro) que nela se encarna. “Meu fantasma se incorpora plenamente em mim.” Das fantasias alheias, chegamos às fantasias (fantasmas) próprias. Nunca conseguimos emergir. O eu é um livro que escrevemos sem saber que escrevemos, e até sem precisar escrever. Nas frestas dessa ficção íntima, em súbitos clarões, despontam breves fachos de lucidez – que só pessoas especiais como F. conseguem acessar.
Walmir Ayala não foi um grande poeta, mas só um crítico habilidoso que se agarrou à poesia para descansar um pouco de si. Escrevia versos, como ele mesmo nos diz, “ansiando pela noite”. Ocorre-me agora uma ideia penosa de Truman Capote, que li num prefácio de Ivan Lessa e que fala não só dos escritores, mas também dos leitores: “Estou aqui sozinho na escuridão de minha loucura, sozinho com meu baralho – e, é claro, o chicote que Deus me deu”.
José Castello, in Sábados inquietos

Nenhum comentário:

Postar um comentário