quinta-feira, 13 de abril de 2017

Uma mulher escamosa

Saudade de um tempo?
Tenho saudade é de não haver tempo.
Dito de Tizangara

Os visitantes se arrumaram na vila: o ministro se estabeleceu na casa do responsável local. Havia uma outra residência para o representante das Nações Unidas. Mas o italiano preferiu ficar na pensão local. Queria manter as independências, fora dos esquemas montados pelas autoridades locais. Eu seguia as ordens, acachorrado com ele. E lá fiquei residindo noutro quarto da pensão. Ao lado, para o que viesse.
Massimo Risi recusou que eu lhe levasse as bagagens e lá foi tropeçando pelos buracos, com maltas de crianças lhe perseguindo e mendigando doces.
Masuíti, patrão. Masuíti.
Eu seguia atrás, respeitosamente. No enquanto, observava o estrangeiro: como a alma dele se via pelas suas traseiras! Os europeus, quando caminham, parecem pedir licença ao mundo. Pisam o chão com delicadeza mas, estranhamente, produzem muito barulho.
Chegamos, enfim, à pensão. Na fachada havia ainda vestígios dos tiros. Buraco de tiro é como ferrugem: nunca envelhece. Aquelas ocavidades pareciam recém-recentes, até faziam estremecer, tal a impressão que a guerra ainda estivesse viva. Em cima da porta, sobrevivia a placa “Pensão Martelo Jonas”. Antes, o nome do estabelecimento era Martelo Proletário. Mudam-se os tempos, desnudam-se as vontades.
Massimo entrou a medo para uma sala escura. Mil olhos esbugolhavam o branco entrando na pensão. Frente a um balcão coberto de jornais antigos, o italiano perguntou:
Pode-me informar quantas estrelas tem este estabelecimento?
Estrelas?
O recepcionista achou que o homem não entendia do bom português e sorriu condescendente:
Meu senhor: aqui, a esta hora, não temos nenhumas estrelas.
O estrangeiro olhou para trás pedindo meu socorro. Me adiantei e expliquei os desejos do visitante. Ele queria conhecer as condições. O recepcionista não se fez esperar:
As condições? Bom, isso é um pouco dificultoso porque, nesta fase, as condições já não são planificadas antecipadamente.
Para mais, há lugares em que a curiosidade não é muito aconselhável. Anteceder-se ao tempo é coisa que só pode trazer azares. E o anfitrião aconselhou: o hóspede que pousasse as malas e a alma. No final de tudo, quando já estivesse de regresso, é que seria boa ocasião para ele entender as chamadas “condições”.
Aqui só se sabe o que está acontecer quando já aconteceu. Está-me a compreender, meu caro senhor?
O italiano olhou o teto com ar de pássaro à procura de orifício na gaiola. A pergunta nos pareceu tola mas o funcionário foi pronto na resposta:
A pensão é privada, mas é do Partido. Isto é, do Estado.
E explicou: nacionalizaram, depois venderam, retiraram a licença, voltaram a vender. E outra vez: anularam a propriedade e, naquele preciso momento, se o estrangeiro assim o desejasse, o hoteleiro até podia facilitar as papeladas para nova aquisição. Falasse com o administrador Jonas, que tinha mandos no negócio.
Quer comprar a pensão?
Mas que comprar?
Agora deve ser barato porque é época muito baixinha para o turismo. Com essas explosões por aí não tem havido muita procura...
O italiano virou-se para mim, como se, de repente, a lonjura se abatesse nele:
Pode-me traduzir, depois?
A convite do recepcionista lá fomos pelo obscuro corredor. O homem ia explicando as insuficiências com o mesmo entusiasmo que outro hoteleiro, em qualquer lugar do mundo, anunciaria os luxos e confortos do seu hotel. E o italiano parecia se arrepender de alguma vez ter querido saber: só havia eletricidade uma hora por dia.
Merda, será que trouxe pilhas suficientes? — se interrogou.
Afinal, eu estava dispensado de traduzir. Massimo sabia-se explicar e, pior ainda, entendia o que lhe diziam. O outro prosseguia com as condições:
Também não há água nas torneiras.
Não há água?
Não se preocupa, meu caro senhor: manhã cedo, havemos de trazer uma lata de água.
E vem de onde, essa água?
A água não vem de nenhum lugar: é um miúdo que traz.
Chegamos ao quarto destinado ao estrangeiro. Eu ficaria mesmo ao lado. Ajudei o italiano a se instalar. O quarto tresandava. O hoteleiro, seguindo à frente, dissertava sobre a variedade de fauna coabitando o mesmo espaço: baratas, aranhas, ratos. No chão havia uma caixa. O homem debruçou-se sobre ela e foi tirando objetos diversos:
Esta revista é para matar as moscas. Esta sola velha é para as baratas. Esta bengala...
Deixe estar, eu resolvo.
O recepcionista abriu as cortinas e uma nuvem de poeira se espalhou pelo aposento. Passado um pouco tudo se tornou mais visível, mas o italiano parecia preferir o escuro. Um líquido espesso escorria pelas paredes.
É água, isso?
Era bom, mas conforme já mencionei, nós aqui não temos água.
O recepcionista já se retirava quando se recordou de uma recomendação. Desta vez, se dirigia a mim como se procurasse cumplicidade.
Às vezes, aparecem nos quartos uns insetos desses, sabe, que chamamos louva-a-deus.
Sei o que são.
Se aparecer um desses não lhe mate — disse, dirigindo-se agora ao italiano. — Nunca faça isso.
E por quê?
Nós aqui não matamos esses bichos. São nossas razões. Esse aí lhe explicará depois.
Risi não se chegou a sentar na solidão do quarto. Passou pelo meu quarto e disse que iria dar uma volta. Precisava respirar e se apressou pelo corredor. Vi-o afastar e, de novo, escutei os seus próprios passos como se ele sozinho perfizesse uma coluna militar.
De repente, o italiano tropeçou num vulto. Era uma velha, talvez a mais idosa pessoa que ele jamais vira. Ajudou-a a erguer-se, conduziu-a até à porta do quarto ao lado. Só então, face à intensa luminosidade que escapava de uma janela, ele notou a capulana mal presa em redor da cancromida vizinha. O italiano esfregou os olhos como se buscasse acertar visão. É que o pano deixava entrever um corpo surpreendentemente liso, de moça polpuda e convidativa. Era como se aquele rosto encarquilhado não pertencesse àquela substância dela.
O italiano todo se arrepiou. Porque ela o olhava com encanto tal que até magoava. Mesmo eu, que languçava a cena de longe, me arregacei. Os olhos da velha continham frescuras e salivas de um beijo prometido. A mulher, toda ela, cheirava a glândula. Podia uma velha com tamanha idade inspirar desejos num homem em plenas faculdades? Massimo Risi se apressou a sair. De passagem pela recepção, aproveitou para recolher informações sobre a idosa mulher.
Ah, essa é Temporina. Ela só anda no corredor, vive no escuro, desde há séculos.
Nunca sai?
Sair?! Temporina?!
O recepcionista riu-se, mas logo se emendou. Vendo que eu me aproximava, escolheu falar o restante comigo. Me acheguei, eu e o italiano nos compadreamos, adjuntando nossos ouvidos. O hospedeiro me fingiu segredar, sabendo que o outro escutava com gravidade:
O seu amigo branco que tenha muito cuidado com essa velha.
Por quê? — perguntou Massimo.
Ela é uma dessas que anda, mas não leva a sombra com ela.
Que é que ele está falando? — voltou a inquirir o italiano.
Você lhe explique, com devido tempo.
Saímos. Na rua, o italiano pareceu ficar vencido pela frescura do fim de tarde. As vendedoras do bazar já arrumavam as suas mercadorias e uma imensa paz parecia regressar à interioridade das coisas. Risi sentou-se no único bar da vila. Parecia querer estar só e eu respeitei esse desejo. Me arrumei mais longe, tomando minha dose de fresco. As pessoas passavam e saudavam o estrangeiro com simpatia. Decorreram, inúmeros, os momentos e lhe perguntei se desejava regressar à pensão. Não queria. Apetecia-lhe nada, simplesmente ficar ali, longe do quarto, distante das suas obrigações. Sentei-me a seu lado. Ele me olhou, como se fosse por primeira vez:
Você quem é?
Sou seu tradutor.
Eu posso falar e entender. Problema não é a língua. O que eu não entendo é este mundo daqui.
Um peso invisível lhe fez descair a cabeça. Parecia derrotado, sem esperança.
Tenho que cumprir esta missão. Eu queria só receber a promoção que há tanto espero.
O senhor vai conseguir.
Acha que vou saber quem fez explodir os soldados?
O italiano estava num desfarrapo. Cabelos baldios, em desmazelo. Foi então que apareceu um homem, todo maltrapilho, que a si mesmo fez menção:
Peço desculpa, meus patrões. Peço falar com esse estrangeiro de fora.
Que se passa?
É que eu sou ligado com o falecido.
Falecido?!
Esse cabrito que foi pisado com o carro.
E então?
É que eu é que sou o dono desse cujo cabrito. E, agora, quem me compensa?
E fez os dedos roçarem uns nos outros, sugerindo a tilintação do dinheiro. O italiano, felizmente, nem entendeu bem o que se passava. Pedi ao dono do malogrado capríneo que voltasse mais tarde. Ele já se retirava quando se recordou de algo e voltou atrás. Para meu espanto, anunciou que meu pai chegara à vila. Primeiro, inacreditei.
Chegou. E se instalou lá na sua velha casa.
Fiquei surpreso. Ele que anunciara que nunca mais regressaria a Tizangara. Agora, que eu estava envolvido naquela missão, residindo por obrigação na pensão, agora é que ele decidia reinstalar-se no lugar da minha infância?
O italiano adivinhou a minha preocupação.
Que se passa?
O senhor não sabe o que significa a chegada de meu velho.
Sem que desse conta eu me abria e confessava antigas lembranças ao estrangeiro. Vantagem de um estranho é que confiamos essa mentira de termos uma só alma.
Mia Couto, in O último voo do Flamingo

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