quarta-feira, 12 de abril de 2017

Os incidentes

Agora, podemos admitir sem dificuldade que nada podia fazer prever aos nossos cidadãos os incidentes que se produziram na primavera desse ano e que foram, como compreendemos depois, os primeiros sinais dos acontecimentos graves cuja crônica nos propusemos fazer aqui. Esses fatos parecerão a alguns perfeitamente naturais e a outros, pelo contrário, inverossímeis. Mas, afinal, um cronista não pode levar em conta essas contradições. Sua tarefa é apenas dizer: “Isso aconteceu”, quando sabe que isso, na verdade, aconteceu; que isso interessou à vida de todo um povo, e que, portanto, há milhares de testemunhas que irão avaliar nos seus corações a verdade do que ele conta.
Aliás, o narrador, que se revelará no momento oportuno, não disporia de meios para lançar-se num empreendimento desse gênero se o acaso não o tivesse posto em condições de recolher um certo número de depoimentos e se a força das circunstâncias não o tivesse envolvido em tudo o que pretende relatar. É isso que o autoriza a agir como historiador. É claro que um historiador, mesmo que não passe de um amador, tem sempre documentos. O narrador desta história tem, portanto, os seus: em primeiro lugar, o seu testemunho; em seguida, o dos outros, já que, pelo seu papel, foi levado a recolher as confidências de todas as personagens desta crônica; e, finalmente, os textos que acabaram caindo em suas mãos. Pretende servir-se deles quando lhe parecer útil e utilizá-los como lhe aprouver. Propõe-se ainda. Mas é talvez tempo de abandonar os comentários e as precauções de linguagem para passar ao assunto em si. O relato dos primeiros dias exige certa minúcia.
Na manhã do dia 16 de abril, o Dr. Bernard Rieux saiu do consultório e tropeçou num rato morto, no meio do patamar. No momento, afastou o bicho sem prestar atenção e desceu a escada. Ao chegar à rua, porém, veio-lhe a ideia de que esse rato não estava no lugar devido e voltou para avisar o porteiro. Diante da reação do velho Michel sentiu melhor o que sua descoberta tinha de insólito. A presença desse rato morto parecera-lhe apenas estranha, enquanto para o porteiro constituía um escândalo. A posição deste último era aliás categórica: não havia ratos na casa. Por mais que o médico lhe garantisse que havia um no patamar do primeiro andar, provavelmente morto, a convicção de Michel permanecia firme. Não havia ratos na casa, e era necessário que tivessem trazido este de fora. Em resumo, tratava-se de uma brincadeira.
Nessa mesma noite, Bernard Rieux, de pé no corredor do prédio, procurava as chaves antes de subir para sua casa, quando viu surgir, do fundo obscuro do corredor, um rato enorme, de passo incerto e pelo molhado. O animal parou, pareceu procurar o equilíbrio, correu em direção ao médico, parou de novo, deu uma cambalhota com um pequeno guincho e parou, por fim, lançando sangue pela boca entreaberta. O médico contemplou-o por um momento e subiu.
Não era no rato que ele pensava. Aquele sangue fazia-o voltar à sua preocupação. Sua mulher, doente há um ano, devia partir no dia seguinte para uma temporada na montanha. Foi encontrá-la deitada no quarto, como lhe pedira que fizesse. Assim, preparava-se para o cansaço da viagem. Sorria.
Sinto-me muito bem — dizia.
O médico olhou o rosto voltado para ele, à luz da lâmpada de cabeceira. Para Rieux, aos trinta anos e a despeito das marcas da doença, esse rosto era sempre o da mocidade devido talvez ao sorriso que dominava todo o resto.
Veja se consegue dormir - disse. — A enfermeira vem às onze horas, e eu vou levá-las até o trem do meio-dia.
Beijou uma testa ligeiramente úmida. O sorriso acompanhou-o até a porta.
No dia seguinte, 17 de abril, às oito horas, o porteiro deteve o médico e acusou gracejadores de mau gosto de haverem posto três ratos mortos no meio do corredor. Deviam tê-los apanhado com grandes ratoeiras, pois estavam cheios de sangue. O porteiro ficara algum tempo à porta, segurando os ratos pelas patas, esperando que os culpados se traíssem por algum sarcasmo. Mas nada acontecera.
Albert Camus, in A peste

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