domingo, 16 de abril de 2017

O que eu carregava comigo me pesava

Ilustração: Rodrigo Rosa

A gente viemos do inferno ― nós todos ― compadre meu Quelemém instrui. Duns lugares inferiores, tão monstro-medonhos, que Cristo mesmo lá só conseguiu aprofundar por um relance a graça de sua sustância alumiável, em as trevas de véspera para o Terceiro Dia. Senhor quer crer? Que lá o prazer trivial de cada um é judiar dos outros, bom atormentar; e o calor e o frio mais perseguem; e, para digerir o que se come, é preciso de esforçar no meio, com fortes dôres; e até respirar custa dôr; e nenhum sossego não se tem. Se creio? Acho proseável. Repenso no acampo da Macaúba da Jaíba, soante que mesmo vi e assaz me contaram; e outros ― as ruindades de regra que executavam em tantos pobrezinhos arraiais: baleando, esfaqueando, estripando, furando os olhos, cortando línguas e orelhas, não economizando as crianças pequenas, atirando na inocência do gado, queimando pessoas ainda meio vivas, na beira de estrago de sangues... Esses não vieram do inferno? Saudações. Se vê que subiram de lá antes dos prazos, figuro que por empreitada de punir os outros, exemplação de nunca se esquecer do que está reinando por debaixo. Em tanto, que muitos retombam para lá, constante que morrem... Viver é muito perigoso.
Mas mor o infernal a gente também media. Digo. A igual, igualmente. As chuvas já estavam esquecidas, e o miôlo mal do sertão residia ali, era um sol em vazios. A gente progredia dumas poucas braças, e calcava o reafundo do areião ― areia que escapulia, sem firmeza, puxando os cascos dos cavalos para trás. Depois, se repraçava um entranço de vice-versa, com espinhos e restolho de graviá, de áspera raça, verde-preto cor de cobra. Caminho não se havendo. Daí, trasla um duro chão rosado ou cinzento, gretoso e escabro ― no desentender aquilo os cavalos arupanavam. Diadorim ― sempre em prumo a cabeça ― o sorriso dele me dobrava o ansiar. Como que falasse: Hê, valentes somos, corruscubas, sobre ninguém ― que vamos padecer e morrer por aqui... Os medeiro-vazes... MedeiroVaz se estugasse adiante, junto com os que rastreavam? Será que de lá ainda se podia receder? De devagar, vi visagens. Os companheiros se prosseguindo, só prosseguindo, receei de ter um vágado ― como tonteira de truaca. Havia eu de saber por que? Acho que provinha de excessos de ideia, pois caminhadas piores eu já tinha feito, a cavalo ou a pé, no tosta-sol. Medo, meu medo. Aguentei. Tanto tudo o que eu carregava comigo me pesava ― eu ressentia as correias dos correames, os formatos. A com légua-e-meia de andada, bebi meu primeiro chupo d água, da cabaça ― eu tinha avarezas dela. Alguma justa noção não emendei, eu pensava desconjuntado. Até que esbarramos. Até que, no mesmo padrão de lugar, sem mudança nenhuma, nenhuma árvore nem barranco, nem nada, se viu o sol de um lado deslizar, e a noite armar do outro. Nem auxiliei a tomar conta dos bois, nem a destravar os burros de albarda. Onde era que os animais iam poder pastar? Noite redondeou, noite sem boca. Desarreei, peei o animal, caí e dormi. Mas, no extremo de adormecer, ainda intrují duas coisas, em cruz! que Medeiro Vaz estava insensato? ― e que o Hermógenes era pactário! Tomo que essas traves fecharam meus olhos. De Diadorim, aí jaz que descansando do meu lado, assim ouvi! ― Pois dorme, Riobaldo, tudo há-de resultar bem... Antes palavras que picaram em mim uma gastura cansada; mas a voz dele era o tanto-tanto para o embabo de meu corpo. Noite essa, astúcia que tive uma sonhice! Diadorim passando por debaixo de um arco-íris. Ah, eu pudesse mesmo gostar dele ― os gostares…
Como vou achar ordem para dizer ao senhor a continuação do martírio, em desde que as barras quebraram, no seguinte, na brumalva daquele falecido amanhecer, sem esperança em uma, sem o simples de passarinhos faltantes? Fomos. Eu abaixava os olhos, para não reter os horizontes, que trancados não alteravam, circunstavam. Do sol e tudo, o senhor pode completar, imaginado; o que não pode, para o senhor, é ter sido, vivido. Só saiba: o Liso do Sussuarão concebia silêncio, e produzia uma maldade ― feito pessoa! Não destruí aqueles pensamentos: ir, e ir, vir ― e só; e que Medeiro Vaz estava demente, sempre existido doidante, só agora pior, se destapava ― era o que eu tinha rompência de gritar. E os outros, companheiros, que é que os outros pensavam? Sei? De certo nadas e noves ― iam como o costume ― sertanejos tão sofridos. Jagunço é homem já meio desistido por si... A calamidade de quente! E o esbraseado, o estufo, a dôr do calor em todos os corpos que a gente tem. Os cavalos venteando ― só se ouvia o resfol deles, cavalanços, e o trabalho custoso de suas passadas. Nem menos sinal de sombra. Agua não havia. Capim não havia. A debeber os cavalos em cocho armado de couro, e dosar a meio, eles esticando os pescoços para pedir, eles olhavam como para seus cascos, mostrando tudo o que cangavam de esforço, e cada restar de bebida carecia de ser poupado. Se ia, o pesadêlo. Pesadêlo mesmo, de delírios. Os cavalos gemiam descrença. Já pouco forneciam. E nós estávamos perdidos. Nenhum pôço não se achava. Aquela gente toda sapirava de olhos vermelhos, arroxeavam as caras. A luz assassinava demais. E a gente dava voltas, os rastreadores farejando, procurando. Já tinha quem beijava os bentinhos, se rezava. De mim, entreguei alma no corpo, debruçado para a sela, numa quebreira. Até minhas testas formaram de chumbo. Valentia vale em todas horas? Repensei coisas de cabeça-branca. Ou eu variava? A saudade que me dependeu foi de Otacília. Moça que dava amor por mim, existia nas Serras dos Gerais ― Buritis Altos, cabeceira de vereda ― na Fazenda Santa Catarina. Me airei nela, como a diguice duma música, outra água eu provava. Otacília, ela queria viver ou morrer comigo ― que a gente se casasse. Saudade se susteve curta.
Guimarães Rosa, in Grande sertão: veredas

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