Vivos
ali só Nando com a lamparina de querosene e Cristo na luz da sua
glória. Diante do Cristo a temível balança onde os menores pecados
de omissão e de intenção rompiam a linha de fé, deslocando com
extravagância o fiel. Murmúrios de maledicência retiniam feito
moedas no metal e velhos gestos de descaso e orgulho eram refeitos e
imobilizados no ar para que deles se extraísse o peso exato, que
afundava o prato. Momentos de amor-próprio e de respeito humano
congelavam em bolas de chumbo, uma em cada prato, retratando vidas
que haviam passado por virtuosas quando eram apenas um hirto
equilíbrio de abominações. É que o Cristo em glória só julgava
ali homens de Deus, que haviam escolhido viver crucificados no
travessão daquela balança. Para os homens em geral a misericórdia
aligeirava os pesos e até invertia a operação, descolando da
própria massa pútrida dos pecados mortais a semente boa que muitas
vezes fora sua origem. Para eles, não. Por trás de sua balança
Cristo juiz encarava Nando. De costas para Nando e muito próximos de
Cristo, seis franciscanos imóveis, três a cada lado, cabeças
baixas cobertas do capuz. Enfrentavam a lei. E para eles não havia
misericórdia. Eram a cabeça de duas filas de monges que aguardavam
sua vez no juízo final. Estavam todos imóveis, imóvel estava o
Cristo como se de súbito se introduzisse nos trabalhos uma alteração
importante. Começara um julgamento sem dúvida mais grave. Era Nando
que subia entre as duas filas de franciscanos. Subia. Cresciam diante
dos seus olhos a balança, a escala, os cutelos, os duros pratos
prontos a reagirem a um frêmito de culpa. Enquadrado, dividido pelas
linhas da balança, Cristo crescente para Nando caminhante. Cristo
duro. Balança ele próprio. Cristo matemata. Nando ultrapassou os
que eram julgados diante da balança, ultrapassou a balança,
colocou-se ao lado direito do Cristo e mirou em frente. Os capuzes
cobriam caveiras e na mão dos frades os rosários se prendiam a
metacarpos e falanges. Eram esqueletos os frades em julgamento. Em
toda a imensa cripta em frente, prolongada num corredor que morria em
trevas, havia ossos empilhados e prontos a se reorganizarem em
esqueletos vestidos de burel mal soasse para cada frade a trombeta de
chamada.
Mas
a pupila de Nando não chegou a se apagar na meditação da morte
porque foi ferida por um tom vermelho. Que podia ser? Que vermelho
era aquele entre as cores sujas do ossuário? Sangue na caveira
ilustre do frade à esquerda? Uma sangrenta marca de mão? Talvez uma
das brincadeiras idiotas de Hosana. Mas o riso que chegou aos seus
ouvidos foi outro.
— Você
pensou mesmo que o esqueleto tinha aberto os pulsos, Nando? — disse
Levindo.
Todos
os seus novos amigos já o tratavam assim, pelo nome. Não era mais
“padre”. A dispersão do mundo dispersava também a sua pessoa.
Seu medo de partir para a missão que o uniria a si mesmo resultava
nisto. O mundo era uma distração feita de um milhão de ideias
passageiras. Uma incessante fita de cinema diante do altar de Deus.
—
Desculpe a mão de sangue aí no irmão
esqueleto. Foi sem querer. Eu me apoiei nele quando os meus olhos
ainda não estavam habituados ao escuro. E me assustei. Que cara
fria!
— Como
é que você entrou aqui? — disse Nando.
Levindo
sorriu malicioso e meneou a cabeça de cabelos pretos cacheados.
— E
a caridade, Nando? Você devia me perguntar primeiro se estou
sentindo dor, se o ferimento é grave.
Só
então é que Nando viu que a mão esquerda de Levindo estava
ensanguentada.
— Me
desculpe — disse Nando —, eu não tinha reparado. Como é que
você se machucou assim?
Levindo
se levantou do canto sombrio em que estava e respondeu com certo
orgulho, erguendo a mão:
— Se
machucou, não senhor. Me machucaram. Tiro, Nando. Bala de rifle. O
Brasil se civiliza.
— Você
precisa ver um médico, Levindo. Não arrisque perder a mão.
— Qual
o quê! Levei um desses tiros com que a gente sonha quando se mete na
luta: de raspão, abaixo do dedo pequeno da mão esquerda. Bastante
sangue mas nenhum osso partido. De encomenda. Acho que a Força
Pública tinha ordem de atirar para o ar. Nenhum camponês ficou
ferido. Meu tiro foi de camaradagem.
—
Cuidado, Levindo — disse Nando. —
Violência é coisa que quem procura encontra sempre.
—
Graças a Deus — disse Levindo.
— O
tiroteio foi por quê?
— Esse
usineiro Zé Quincas, da Usina Estrela, é o mais poderoso e o mais
safado de todos eles. Se a gente conseguir curvar essa peste os
outros vão ver que a coisa não é mais brincadeira. Eu fui lá com
uns camponeses que entraram para o sindicato e foram despedidos.
Voltei com eles, que queriam desafiar Zé Quincas criando um caso
como o de hoje. Fui ajudar eles a fazerem casas nas terras da Usina.
Eles têm direitos adquiridos, que diabo.
—
Fazerem casa em terra dos outros?
— Toda
a terra em Pernambuco é dos outros. Eu sabia e os camponeses sabiam
que a polícia, que também é dos outros, acudia logo para
desmanchar as choupanas. Dito e feito.
Levindo
continuou desfiando a história da chegada da polícia, das
arrogâncias de Zé Quincas e das condições de trabalho escravo que
impunha aos lavradores, mas Nando fitava com desalento a mancha de
sangue no marfim ilustre da caveira franciscana. Uma profanação, o
episódio de loucura e violência vindo desaguar no ossuário. O
sangue de um jovem desmiolado a manchar quem só aguardava o sangue
da Ressurreição. Que tinha Levindo a fazer ali, santo Deus? Na
primeira pausa Nando insistiu:
— Sei,
sei... Mas como é que você veio parar no ossuário?
— O
importante era eu ficar bem escondido enquanto Januário movimenta os
advogados. O importante era não me prenderem em flagrante de invasão
de terras. Se eu fosse para casa ou qualquer lugar conhecido deles,
me prendiam. O ossuário me pareceu a melhor ideia do mundo. O que eu
não esperava era encontrar a porta aberta.
— A
porta estava aberta?...
Nem
para isto servia mais, disse Nando a si mesmo. Nem mais usava para
trancar portas as chaves confiadas à sua guarda.
—
Francisca tinha me falado tanto no
ossuário — disse Levindo. — Como esconderijo confesso que não
há melhor.
—
Francisca disse a você que era bom
esconderijo?
— Não,
coitada, ela nem sabe que estou aqui. Francisca me falou na cripta
com entusiasmo, foi só. Quer fazer desenhos aqui.
Nando
respirou com alívio. Pontes não atraiçoam as margens em que se
apoiam e Francisca era o carreiro de estrelas entre mundos. Desde que
d. Anselmo lhe dera permissão — mais do que isto, lhe ordenara —
que saísse do mosteiro, que fizesse relações com gente do mundo,
Nando só tinha encontrado uma paz séria e tranquila em Francisca,
noiva de Levindo. O mais era o desmembramento, o mundo entrando em
filetes de distração por todas as frinchas da fortaleza que ele
fora antigamente. A convivência com seus amigos ingleses era, sem
dúvida, estimulante mas agora o levava quase ao desespero, de tanto
que o tirava de dentro de si mesmo. Nando reparou que Levindo tinha
parado de falar e que se sentava sobre uma pedra, o rosto amarelo
como o das caveiras. Nando o amparou, ansioso:
— Meu
Deus — disse Nando — em vez de socorrê-lo, eu...
Levindo
tentou um sorriso, a testa úmida de suor:
— A
culpa é minha, que vim perturbar o seu retiro. Não é nada não.
Uma tonteira que já está passando.
— Acho
que não há mais perigo de sairmos daqui. O ar é um pouco viciado e
você perdeu sangue. Vamos ao refeitório tomar um café bem quente.
— Mais
uma horazinha fora de circulação não vai me fazer mal nenhum.
Quando eu sair, Januário já tomou as providências. Nós temos tudo
muito bem combinado.
— Então
escute — disse Nando. — Espere aqui um minuto. Eu vou à farmácia
apanhar gaze e iodo para um curativo e trago também alguma coisa
para você comer.
Nando
voltou com uma pasta em que enfiara os remédios, a garrafa térmica
de café e o pão. Desinfetou e atou a mão ferida enquanto Levindo,
muito branco, desviava o olhar para não assistir ao curativo. Depois
Levindo mordeu com fome o pão e tomou grandes sorvos do café. Ficou
de rosto rosado, de olhos brilhantes e Nando, por um momento,
mergulhou por completo no enlevo de ver a vida animando de novo a
cara daquele quase menino ainda. Enlevo de pouca duração porque
Levindo de pronto tirou um cigarro do bolso e o acendeu cantarolando
uma música popular. O fumo, a música, a caveira com a nódoa de
sangue eram uma espécie de representação palpável das distrações
inimigas dos místicos. Levindo deu uma tragada funda e espalhou uma
nuvem de fumaça pelos esqueletos e pelo Cristo.
— Puxa,
agora sim, seu samaritano, agora você será sem dúvida
recompensado.
Antonio
Callado, in Quarup
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