sábado, 22 de abril de 2017

O ossário (trecho)


Vivos ali só Nando com a lamparina de querosene e Cristo na luz da sua glória. Diante do Cristo a temível balança onde os menores pecados de omissão e de intenção rompiam a linha de fé, deslocando com extravagância o fiel. Murmúrios de maledicência retiniam feito moedas no metal e velhos gestos de descaso e orgulho eram refeitos e imobilizados no ar para que deles se extraísse o peso exato, que afundava o prato. Momentos de amor-próprio e de respeito humano congelavam em bolas de chumbo, uma em cada prato, retratando vidas que haviam passado por virtuosas quando eram apenas um hirto equilíbrio de abominações. É que o Cristo em glória só julgava ali homens de Deus, que haviam escolhido viver crucificados no travessão daquela balança. Para os homens em geral a misericórdia aligeirava os pesos e até invertia a operação, descolando da própria massa pútrida dos pecados mortais a semente boa que muitas vezes fora sua origem. Para eles, não. Por trás de sua balança Cristo juiz encarava Nando. De costas para Nando e muito próximos de Cristo, seis franciscanos imóveis, três a cada lado, cabeças baixas cobertas do capuz. Enfrentavam a lei. E para eles não havia misericórdia. Eram a cabeça de duas filas de monges que aguardavam sua vez no juízo final. Estavam todos imóveis, imóvel estava o Cristo como se de súbito se introduzisse nos trabalhos uma alteração importante. Começara um julgamento sem dúvida mais grave. Era Nando que subia entre as duas filas de franciscanos. Subia. Cresciam diante dos seus olhos a balança, a escala, os cutelos, os duros pratos prontos a reagirem a um frêmito de culpa. Enquadrado, dividido pelas linhas da balança, Cristo crescente para Nando caminhante. Cristo duro. Balança ele próprio. Cristo matemata. Nando ultrapassou os que eram julgados diante da balança, ultrapassou a balança, colocou-se ao lado direito do Cristo e mirou em frente. Os capuzes cobriam caveiras e na mão dos frades os rosários se prendiam a metacarpos e falanges. Eram esqueletos os frades em julgamento. Em toda a imensa cripta em frente, prolongada num corredor que morria em trevas, havia ossos empilhados e prontos a se reorganizarem em esqueletos vestidos de burel mal soasse para cada frade a trombeta de chamada.
Mas a pupila de Nando não chegou a se apagar na meditação da morte porque foi ferida por um tom vermelho. Que podia ser? Que vermelho era aquele entre as cores sujas do ossuário? Sangue na caveira ilustre do frade à esquerda? Uma sangrenta marca de mão? Talvez uma das brincadeiras idiotas de Hosana. Mas o riso que chegou aos seus ouvidos foi outro.
Você pensou mesmo que o esqueleto tinha aberto os pulsos, Nando? — disse Levindo.
Todos os seus novos amigos já o tratavam assim, pelo nome. Não era mais “padre”. A dispersão do mundo dispersava também a sua pessoa. Seu medo de partir para a missão que o uniria a si mesmo resultava nisto. O mundo era uma distração feita de um milhão de ideias passageiras. Uma incessante fita de cinema diante do altar de Deus.
Desculpe a mão de sangue aí no irmão esqueleto. Foi sem querer. Eu me apoiei nele quando os meus olhos ainda não estavam habituados ao escuro. E me assustei. Que cara fria!
Como é que você entrou aqui? — disse Nando.
Levindo sorriu malicioso e meneou a cabeça de cabelos pretos cacheados.
E a caridade, Nando? Você devia me perguntar primeiro se estou sentindo dor, se o ferimento é grave.
Só então é que Nando viu que a mão esquerda de Levindo estava ensanguentada.
Me desculpe — disse Nando —, eu não tinha reparado. Como é que você se machucou assim?
Levindo se levantou do canto sombrio em que estava e respondeu com certo orgulho, erguendo a mão:
Se machucou, não senhor. Me machucaram. Tiro, Nando. Bala de rifle. O Brasil se civiliza.
Você precisa ver um médico, Levindo. Não arrisque perder a mão.
Qual o quê! Levei um desses tiros com que a gente sonha quando se mete na luta: de raspão, abaixo do dedo pequeno da mão esquerda. Bastante sangue mas nenhum osso partido. De encomenda. Acho que a Força Pública tinha ordem de atirar para o ar. Nenhum camponês ficou ferido. Meu tiro foi de camaradagem.
Cuidado, Levindo — disse Nando. — Violência é coisa que quem procura encontra sempre.
Graças a Deus — disse Levindo.
O tiroteio foi por quê?
Esse usineiro Zé Quincas, da Usina Estrela, é o mais poderoso e o mais safado de todos eles. Se a gente conseguir curvar essa peste os outros vão ver que a coisa não é mais brincadeira. Eu fui lá com uns camponeses que entraram para o sindicato e foram despedidos. Voltei com eles, que queriam desafiar Zé Quincas criando um caso como o de hoje. Fui ajudar eles a fazerem casas nas terras da Usina. Eles têm direitos adquiridos, que diabo.
Fazerem casa em terra dos outros?
Toda a terra em Pernambuco é dos outros. Eu sabia e os camponeses sabiam que a polícia, que também é dos outros, acudia logo para desmanchar as choupanas. Dito e feito.
Levindo continuou desfiando a história da chegada da polícia, das arrogâncias de Zé Quincas e das condições de trabalho escravo que impunha aos lavradores, mas Nando fitava com desalento a mancha de sangue no marfim ilustre da caveira franciscana. Uma profanação, o episódio de loucura e violência vindo desaguar no ossuário. O sangue de um jovem desmiolado a manchar quem só aguardava o sangue da Ressurreição. Que tinha Levindo a fazer ali, santo Deus? Na primeira pausa Nando insistiu:
Sei, sei... Mas como é que você veio parar no ossuário?
O importante era eu ficar bem escondido enquanto Januário movimenta os advogados. O importante era não me prenderem em flagrante de invasão de terras. Se eu fosse para casa ou qualquer lugar conhecido deles, me prendiam. O ossuário me pareceu a melhor ideia do mundo. O que eu não esperava era encontrar a porta aberta.
A porta estava aberta?...
Nem para isto servia mais, disse Nando a si mesmo. Nem mais usava para trancar portas as chaves confiadas à sua guarda.
Francisca tinha me falado tanto no ossuário — disse Levindo. — Como esconderijo confesso que não há melhor.
Francisca disse a você que era bom esconderijo?
Não, coitada, ela nem sabe que estou aqui. Francisca me falou na cripta com entusiasmo, foi só. Quer fazer desenhos aqui.
Nando respirou com alívio. Pontes não atraiçoam as margens em que se apoiam e Francisca era o carreiro de estrelas entre mundos. Desde que d. Anselmo lhe dera permissão — mais do que isto, lhe ordenara — que saísse do mosteiro, que fizesse relações com gente do mundo, Nando só tinha encontrado uma paz séria e tranquila em Francisca, noiva de Levindo. O mais era o desmembramento, o mundo entrando em filetes de distração por todas as frinchas da fortaleza que ele fora antigamente. A convivência com seus amigos ingleses era, sem dúvida, estimulante mas agora o levava quase ao desespero, de tanto que o tirava de dentro de si mesmo. Nando reparou que Levindo tinha parado de falar e que se sentava sobre uma pedra, o rosto amarelo como o das caveiras. Nando o amparou, ansioso:
Meu Deus — disse Nando — em vez de socorrê-lo, eu...
Levindo tentou um sorriso, a testa úmida de suor:
A culpa é minha, que vim perturbar o seu retiro. Não é nada não. Uma tonteira que já está passando.
Acho que não há mais perigo de sairmos daqui. O ar é um pouco viciado e você perdeu sangue. Vamos ao refeitório tomar um café bem quente.
Mais uma horazinha fora de circulação não vai me fazer mal nenhum. Quando eu sair, Januário já tomou as providências. Nós temos tudo muito bem combinado.
Então escute — disse Nando. — Espere aqui um minuto. Eu vou à farmácia apanhar gaze e iodo para um curativo e trago também alguma coisa para você comer.
Nando voltou com uma pasta em que enfiara os remédios, a garrafa térmica de café e o pão. Desinfetou e atou a mão ferida enquanto Levindo, muito branco, desviava o olhar para não assistir ao curativo. Depois Levindo mordeu com fome o pão e tomou grandes sorvos do café. Ficou de rosto rosado, de olhos brilhantes e Nando, por um momento, mergulhou por completo no enlevo de ver a vida animando de novo a cara daquele quase menino ainda. Enlevo de pouca duração porque Levindo de pronto tirou um cigarro do bolso e o acendeu cantarolando uma música popular. O fumo, a música, a caveira com a nódoa de sangue eram uma espécie de representação palpável das distrações inimigas dos místicos. Levindo deu uma tragada funda e espalhou uma nuvem de fumaça pelos esqueletos e pelo Cristo.
Puxa, agora sim, seu samaritano, agora você será sem dúvida recompensado.
Antonio Callado, in Quarup

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