segunda-feira, 10 de abril de 2017

O marquesão de jaqueira


Espiando a lua que branqueava o pátio, seu Libório pinicava a prima da viola, gemendo baixinho uns versos de embolada. Alexandre, com ar de entendido, aprovava a cantoria. Mestre Gaudêncio curandeiro gingava, como se quisesse dançar. Os bilros da almofada de Cesária tocavam castanholas na esteira. Um cajado bateu no copiar:
Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo.
O cego preto Firmino entrou e, tateando, ladeando a parede, foi acocorar-se. Os bilros emudeceram e a voz de Cesária ergueu-se lenta:
Conte a história do marquesão, Alexandre.
É o que eu estava com vontade de pedir, meu padrinho, o marquesão, gritou Das Dores.
Bobagem, resmungou Alexandre enrugando a cara. Seu Libório está desovando uma cantiga bonita, e seu Libório é o cantador mais famoso desta ribeira. Quando seu Libório abre o bico, até os passarinhos do mato se escondem.
O violeiro, modesto, interrompeu o canto e abafou com as mãos o rumor das cordas.
Não senhor. Isso é bondade. Estava aqui dizendo umas besteiras, para matar tempo. Agora se seu Alexandre tem um marquesão na cabeça, eu me calo. Quando seu Alexandre move um dedo, quem se atreve a piar? Hem? Puxe o marquesão, seu Alexandre.
Não senhor, não puxo, resistiu o dono da casa. Faço lá semelhante desfeita a uma criatura do seu tope? Continue, seu Libório.
Continuo não. Quem sou eu? Vim escutar. Fale seu Alexandre, que é homem de merecimento.
Passaram quinze minutos nesse jogo, cada um tentando encolher-se e elevar o outro. Enfim Alexandre se deu por vencido:
Vossemecês mandam. Eu estava quieto, mas seu Libório decide, e não tenho remédio senão obedecer. A culpada foi Cesária, que atirou em cima da gente um marquesão da jaqueira, um traste velho sem importância. Não valia a pena tocar nele. Para quê? Cesária tem cada lembrança! Eu começo, meus amigos. Não sou de gabolices. Reconheço que possuo algumas habilidades: enxergo no escuro, aguento-me numa sela e atiro regularmente. Mas em muitos casos espichados aqui para os senhores não mostrei valor. Comprei um papagaio que tinha astúcias de cristão e vi uma guariba diferente das outras. Qualquer um podia comprar o papagaio e ver a guariba, não é verdade? Na história de hoje também não pratiquei ação: recebi foi um susto dos demônios. Bem, vou principiar do princípio. Quando meu pai entregou a alma a Deus, deixou tantos possuídos que os oficiais de justiça arregalaram o olho: terra, muito patacão de ouro, um despotismo de gado. Meu irmão mais novo queria correr mundo e no inventário recebeu o quinhão dele em dinheiro; eu aceitei a fazenda, os animais e uma casa na rua, uma tapera que mandei reformar, caiar, pintar e enfeitar. Encomendei para ela móveis caros de lorde: mesas com embutidos, cadeiras fofas, camas de molas, armários, trocinhos miúdos sem nome e sem préstimo, cortinas, penduricalhos, um marquesão de jaqueira, enorme, coberto de couro lavrado, uma peça que me saiu por seiscentos e vinte mil-réis. Pronta a casa, vivemos nela uns dias, na grandeza, recebendo visitas do prefeito, do juiz, do vigário, do chefe político, de todas as autoridades do lugar. Voltamos para a fazenda, mas aí Cesária apanhou um resfriado, cuspiu sangue, esteve uns meses bamba, entre a vida e a morte. Quando pisou no chão, só tinha osso, coitada. Magra como um cassaco, amarela como gema de ovo. Deixei a nossa terra e andei tempo sem fim para cima e para baixo, procurando um doutor que botasse a mulher nos trilhos. Depois de muito xarope e muita garrafada, ela endureceu o espinhaço, tomou carne e endireitou a figura. Mas eu tinha gasto uma fortuna, tinha esbagaçado a herança quase toda em médico e botica para remendar o interior da patroa. Dinheiro nenhum, os bois desaparecendo, a miunça acabando na morrinha.
Exatamente, Alexandre, murmurou Cesária triste, o cachimbo apagado, o olho distante, o cotovelo pregado na almofada. Aquela macacoa estragou o nosso cabedal. É verdade que me aprumei, mas ficamos na tira e você precisou começar a vida de novo.
Alexandre amarrou a conversa na palavra da companheira:
Isso, começar a vida de novo, deitar os bofes pela boca varando caminho, num desespero, do sertão para a mata e da mata para o sertão, comprando e vendendo. Felizmente eu dispunha de consideração, graças a Deus não me faltava crédito. Consegui levantar-me: os currais encheram-se, a cabroeira valente espalhou-se nos arredores, contando lambança, e rolos de notas graúdas forraram os fundos das arcas. Mas tive um trabalhão infeliz, espremendo os miolos e consumindo o corpo. Um dia Cesária chegou junto de mim e saiu-se com esta proposta: — “Xandu, vamos passar na rua a festa da Senhora Sant’Ana?” Não respondi que sim nem que não, e Cesária, renitente, pegou a amolar-me: — “Vamos, Xandu. Você, numa labuta dos diabos, se esquece do mundo. Faz um bando de anos que não saímos deste buraco, nem para ouvir missa. Vivemos em pecado, isto aqui fede a heresia, Xandu. E aquela casa fechada está se desgraçando com certeza no cupim e na goteira. Vamos passar na rua a festa da Senhora Sant’Ana.” Foram as suas palavras, Cesária.
Foram as minhas palavras, Alexandre. Você tem memória.
Graciliano Ramos, in Histórias de Alexandre

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