Espiando
a lua que branqueava o pátio, seu Libório pinicava a prima da
viola, gemendo baixinho uns versos de embolada. Alexandre, com ar de
entendido, aprovava a cantoria. Mestre Gaudêncio curandeiro gingava,
como se quisesse dançar. Os bilros da almofada de Cesária tocavam
castanholas na esteira. Um cajado bateu no copiar:
—
Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo.
O
cego preto Firmino entrou e, tateando, ladeando a parede, foi
acocorar-se. Os bilros emudeceram e a voz de Cesária ergueu-se
lenta:
— Conte
a história do marquesão, Alexandre.
— É
o que eu estava com vontade de pedir, meu padrinho, o marquesão,
gritou Das Dores.
—
Bobagem, resmungou Alexandre enrugando a
cara. Seu Libório está desovando uma cantiga bonita, e seu Libório
é o cantador mais famoso desta ribeira. Quando seu Libório abre o
bico, até os passarinhos do mato se escondem.
O
violeiro, modesto, interrompeu o canto e abafou com as mãos o rumor
das cordas.
— Não senhor. Isso é bondade. Estava
aqui dizendo umas besteiras, para matar tempo. Agora se seu Alexandre
tem um marquesão na cabeça, eu me calo. Quando seu Alexandre move
um dedo, quem se atreve a piar? Hem? Puxe o marquesão, seu
Alexandre.
— Não senhor, não puxo, resistiu o
dono da casa. Faço lá semelhante desfeita a uma criatura do seu
tope? Continue, seu Libório.
— Continuo não. Quem sou eu? Vim
escutar. Fale seu Alexandre, que é homem de merecimento.
Passaram quinze minutos nesse jogo, cada
um tentando encolher-se e elevar o outro. Enfim Alexandre se deu por
vencido:
— Vossemecês mandam. Eu estava quieto,
mas seu Libório decide, e não tenho remédio senão obedecer. A
culpada foi Cesária, que atirou em cima da gente um marquesão da
jaqueira, um traste velho sem importância. Não valia a pena tocar
nele. Para quê? Cesária tem cada lembrança! Eu começo, meus
amigos. Não sou de gabolices. Reconheço que possuo algumas
habilidades: enxergo no escuro, aguento-me numa sela e atiro
regularmente. Mas em muitos casos espichados aqui para os senhores
não mostrei valor. Comprei um papagaio que tinha astúcias de
cristão e vi uma guariba diferente das outras. Qualquer um podia
comprar o papagaio e ver a guariba, não é verdade? Na história de
hoje também não pratiquei ação: recebi foi um susto dos demônios.
Bem, vou principiar do princípio. Quando meu pai entregou a alma a
Deus, deixou tantos possuídos que os oficiais de justiça
arregalaram o olho: terra, muito patacão de ouro, um despotismo de
gado. Meu irmão mais novo queria correr mundo e no inventário
recebeu o quinhão dele em dinheiro; eu aceitei a fazenda, os animais
e uma casa na rua, uma tapera que mandei reformar, caiar, pintar e
enfeitar. Encomendei para ela móveis caros de lorde: mesas com
embutidos, cadeiras fofas, camas de molas, armários, trocinhos
miúdos sem nome e sem préstimo, cortinas, penduricalhos, um
marquesão de jaqueira, enorme, coberto de couro lavrado, uma peça
que me saiu por seiscentos e vinte mil-réis. Pronta a casa, vivemos
nela uns dias, na grandeza, recebendo visitas do prefeito, do juiz,
do vigário, do chefe político, de todas as autoridades do lugar.
Voltamos para a fazenda, mas aí Cesária apanhou um resfriado,
cuspiu sangue, esteve uns meses bamba, entre a vida e a morte. Quando
pisou no chão, só tinha osso, coitada. Magra como um cassaco,
amarela como gema de ovo. Deixei a nossa terra e andei tempo sem fim
para cima e para baixo, procurando um doutor que botasse a mulher nos
trilhos. Depois de muito xarope e muita garrafada, ela endureceu o
espinhaço, tomou carne e endireitou a figura. Mas eu tinha gasto uma
fortuna, tinha esbagaçado a herança quase toda em médico e botica
para remendar o interior da patroa. Dinheiro nenhum, os bois
desaparecendo, a miunça acabando na morrinha.
— Exatamente, Alexandre, murmurou
Cesária triste, o cachimbo apagado, o olho distante, o cotovelo
pregado na almofada. Aquela macacoa estragou o nosso cabedal. É
verdade que me aprumei, mas ficamos na tira e você precisou começar
a vida de novo.
Alexandre amarrou a conversa na palavra
da companheira:
— Isso, começar a vida de novo, deitar
os bofes pela boca varando caminho, num desespero, do sertão para a
mata e da mata para o sertão, comprando e vendendo. Felizmente eu
dispunha de consideração, graças a Deus não me faltava crédito.
Consegui levantar-me: os currais encheram-se, a cabroeira valente
espalhou-se nos arredores, contando lambança, e rolos de notas
graúdas forraram os fundos das arcas. Mas tive um trabalhão
infeliz, espremendo os miolos e consumindo o corpo. Um dia Cesária
chegou junto de mim e saiu-se com esta proposta: — “Xandu, vamos
passar na rua a festa da Senhora Sant’Ana?” Não respondi que sim
nem que não, e Cesária, renitente, pegou a amolar-me: — “Vamos,
Xandu. Você, numa labuta dos diabos, se esquece do mundo. Faz um
bando de anos que não saímos deste buraco, nem para ouvir missa.
Vivemos em pecado, isto aqui fede a heresia, Xandu. E aquela casa
fechada está se desgraçando com certeza no cupim e na goteira.
Vamos passar na rua a festa da Senhora Sant’Ana.” Foram as suas
palavras, Cesária.
— Foram as minhas palavras, Alexandre.
Você tem memória.
Graciliano Ramos, in Histórias
de Alexandre
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