sexta-feira, 21 de abril de 2017

O grande samba disperso

João Policarpo fala, longos ais.
Se canta: mau pranto.
Perfunctório. Agarrado de
angústias. Cuida de: mentiras,
saudades, traição, lembrança.

A situação parou, meu coração se afundou. Ora, a vida. Entestei com grande espanto, artifícios de ilusão. Não desminto desta fé — o que em mim era verdade. Amar, mais, era proibido. Maria das Mercês... Mas ela era mulher, mulher, simpatia mal mostrada. Ela estava junto a mim, não em minha companhia; em suas faces era de noite, em seus olhos era de dia... Promessa feita — amor desfeito. Se abraçou com minhas pernas ao pé-da-cruz. Só as lagriminhas, quase — dessas águas crocodilas. Só a que seu tanto não sofreu, é que ama com falsidades. O que foi, já manhã clara. De um juramento que dei: que o meu perdão eu não dava. Maria’s Mercês da maldade. Não perdi nenhum valor, amor sofrido dobrado. Cumpro minha obrigação de dor, meu senhor. Estou alegre de trono, só choro estas poucas lágrimas. Amanhã vou esquecer, depois então vou saber: saudade é chateação, pensamento com cansaço. Saí de lá com o coração muito bandido. Saí, senhor. Ninguém dê notícias minhas. Eu não posso chegar à razão, de umas tantas criaturas Maria passou pela tarde. Só — o que sei — é cidade e amor; para que fazer caso? Urubu que praguejou, há-de a ver que não me mate. Desculpe franquezas minhas, mas eu estou na liberdade. Guardei paixão? Agora eu estou em outrora, veja, vou compor aquela tristeza. O tremido do meu ser, que é o viver desnorteado. Agora, se vou lá ver. Sozinho é que sei sofrer. Mas, antes, penar constante, que se usar o mal-comprado. Crescer, mercês de saudade. Aqui estou João Policarpo, um servo do senhor, meu senhor. O senhor quem será, sua graça?
Amorearte de Almeida (doutor, não-compositor). — Vejo as muralhas da cidade. Reflito-as: vastas, várias, as ondas indivíduas, miríades demais. Tenho nos meus ouvidos este sinapismo de sons. O povo popular, a rua estrábica, a pânica floresta, um frondoso gemer, um tudo chão, denso como um bambual, as enfeitiçagens, a preparação do prazer, o paraforamento; luzes, numa remotidão de estrelas; e sempre a noite, antiquíssima — nigrícia. Desesperem-se-me os fatos. O círculo do amor, tão repetido: esta é a água de fontes amargas. O silêncio é moralmente incompleto. Enquanto o tempo não parar de cair, não teremos equilíbrio. Vou ao vento, para meu assento. Vou? Eu ouço. Ou não ou? Mas sou teu irmão. Muito prazer.

Policarpo (sério). — Agradecido.
João do Colégio (vem, recitando sozinho). — Desde que choveu, minha Mãe, doeu muito esta cidade...
Amorearte. — E você quem é, trôpego efebo?
Do Colégio. — Sou só o irmão da Mercês, ela me mandou com um recado. Saber se já pode voltar...
Policarpo. — Nunca nunca!
Amorearte. — Num canunca está você — canunca infausto.
Policarpo. — Sou homem. Sei o que não quero...
Amorearte. — Sabe-se a quantas? Sabe quem você-mesmo é, você se entende, o que quer? Você quererá é: medula, banzo, descordo para desenfastiar, zabumba, gemidão de urso, palavras de doce escárnio, horas de inteira terra; meia-noite sem relógio, dispersão de outras mágoas, ver a vida em grandes grãos, morder o dia, encher a noite; ser o alegre alguém, nas operações de mudar de amor, fauno feito; chorar barrigudamente, um grito próprio para a alma ouvir, entremeio aos romances; dar suas proclamações de dor, de dor de amor de mentira; chorar, de qualquer maneira: eis o problema; tal bruaá... Você diz: o triste de mim... Você, navegador de limo e lodo, por derrota repetida. Você se esbalhou e esbandalhou-se, nos quantos caminhos da cidade, então seu espírito parou as máquinas. Você é um corpo de ressonância. Você está é sufocado de amor, cuja uma paixão ingovernada. Ou você beija, ou mata.
Policarpo. — Eu penso que...
Amorearte. — Cale-se. O pensamento é um fútil pássaro. Toda razão é medíocre. Viver é respirar; pensar já é morrer. Só Deus é dono de todas as simultaneidades. Só há um diálogo verdadeiro: o do silêncio e da voz. Se quer dizer alguma coisa, diga, por exemplo:... Em minha alma se abriu, esta hora, um golfo de Guiné...
Policarpo. — Mas, a ingratidão...
Amorearte. — Isto é o contramotivo. O mugido do vento é um mugido de cobra. Coragem, mais!
O Morenão (não entra, cantando). — Se eu fiz chorar, foi legal...
Amorearte. — E você, quem é, vil hermeneuta? Que é isso?
O Morenão. — O breque. Sou um que foi o homem da Maria das Mercês. Sou mais não. Tudo se acabou tanto, que nem houve. Só foi um engano.
Amorearte (a Policarpo). — Está vendo? Perceba-se, Policarpo!
Policarpo . — Seja o que for, meu senhor. Ela...
Amorearte. — Sempre tem ela. Bela, flor para impurezas, a rara natureza — para você. Mais rara que ela, só a malva amarela, eu sei, eu sei... Seus beiços bugres... Pavã, pavoa. Você queria era ser pedrinha no sapato dela. Mas você gosta dela?
Policarpo. — Não amuo de outra tristeza...
Joaquim Imaculado (passa, cantando). — Mas, afinal, que tenho eu, com peru que outrem comeu?...
Amorearte. — E quem é você, tão recém-chegado? Você vem lá: vejo a tristeza... Agacha-te, escriba!
Joaquim Imaculado. — Serviços, meu senhor. Sou um que ia ser, daqui a muitos anos, o homem da Maria das Mercês. Vou ser mais não. Ia ser só um engano.
Amorearte (a Policarpo). — Está vendo? Concerte-se, Policarpo!
Policarpo. — O bom, para mim, se acabou. Tudo é passado... Me indiguina.
Amorearte. — Mulheres passadas é que movem amores. Tira o sentido disso, Policarpo. Refresca teu coração. Sofre, sofre, depressa, que é para as alegrias novas poderem vir...
Maria das Mercês (chega, chorosa e esplendente). — Triste foi aquele dia, de saudades replantado... Não fui eu que estive em teus braços? No mundo quem te viu, ainda não existiu o outro homem... Sinto no peito, por fora, é o suor? E por dentro, meu amor? De te perder devagar, não sou de me conformar. Debaixo dessa promessa, ai, ai, ai, sem um tiquinho de gratidão, sem uma compreensão, sinto esta separação, que ela só me perambula... Eu quero querer tudo com você, um carinho, um amor, e você está só é aprendendo a amar... Meu amor de enlouquecer, esperar é esta minha agonia... Terá sido um amor que eu perdi?
Policarpo. — Ingrata! Perdemos...
Amorearte. — Alto lá! Basta. Um momento. Seja não, não, sim, sim; mas, vejam bem, se perderam, mesmo. Amor perdido é amor que não foi achado: não-amor. Não o amor-mor, o mor amor. Mas falso amor, algum engano. O falso-amor é um biombo, o mor-amor é um ribombo. Então, se não é, resolvam: e... pirai-vos! — oh grandes entes imorais... Perdido por um, perdido por mil... — como dizem as cachoeiras...
Policarpo. — Ela...
Mercês. — Ele...
Amorearte. — Um momento! Com a natureza humana decaída, eu me entendo. Vocês dois estão quais quiabos no oásis. Se querem dizer alguma coisa, digam, por exemplo: ... Laço foi o que me trouxe. Minha carne viu por meus olhos. Mundo isolado de mim. Bom-grado vou. Amanhã e estrelas. Sinto-me. Quando sinto, minto? Meu teu meu-amor...
Mercês. — ... ai, ai, ai.
Policarpo. — ... ê ê ê, ô ô ô.
Amorearte. — Unissoou. Amor renhido, amor crescido. Cousa grande! Vocês dois são o que-não-sei: o tudo, a... persistência da lua, apesar das cidades. Umbigo — centro, centro, centro. Umbigo — medida ideal. Havei forte amor! O amor não precisa de memória, não arredonda, não floreia: faz forte estilo. E fim.
Guimarães Rosa, in Ave, Palavra

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