sábado, 1 de abril de 2017

O bolo

Eu viajava. A paisagem no meio da qual me achava era de uma grandeza e de uma nobreza irresistíveis. Alguma coisa se passou nesse momento em minha alma. Os meus pensamentos vagavam com uma ligeireza igual à da atmosfera. As paixões vulgares, como o ódio e o amor profano, pareciam-me, então, distantes como as nuvens que desfilavam no fundo dos abismos sob os meus pés. Minha alma parecia-me vasta e pura como a cúpula do céu que me cercava. Das coisas terrestres só me chegava ao coração a lembrança diminuída e apagada, como o ruído dos guizos de gado quase imperceptível que pastava ao longe, muito longe, na vertente de outra montanha. Sobre o pequeno lago imóvel, negro em sua imensa profundeza, passava às vezes a sombra de uma nuvem, como o reflexo do manto de um gigante aéreo que voasse pelo céu. Lembro-me de que essa sensação solene e rara, provocada por um grande movimento perfeitamente silencioso, enchia-me de um misto de alegria e de medo. Sentia-me em suma, graças à entusiasmadora beleza que me cercava, em perfeita paz comigo mesmo e com o universo. Creio até que, na minha perfeita beatitude e no meu total esquecimento de todo o mal terrestre, eu chegara ao ponto de não mais achar tão ridículos os jornais que pretendem que o homem nasceu bom. Foi quando a matéria incurável, renovando suas exigências, fez-me pensar em reparar o cansaço e aliviar o apetite causados por tão longa subida. Tirei do bolso um grande pedaço de pão, um copo de couro e um frasco de um certo elixir que os farmacêuticos da época vendiam aos excursionistas para que o misturassem com a água da neve.
Eu estava tranquilamente cortando o meu pão, quando um leve ruído me fez erguer os olhos. Diante de mim estava um pequeno ser andrajoso, desgrenhado, cujos olhos fundos, ferozes e como suplicantes, devoravam o pedaço de pão. Ouvi-o suspirar, então, com uma voz baixa e rouca, a palavra: Bolo! Não pude deixar de rir ao escutar o nome com que ele pretendia honrar o meu pão quase branco, e cortei para ele uma fatia que lhe ofereci. Ele se aproximou devagarinho, sem tirar os olhos do objeto de sua cobiça. Depois, apanhando a fatia com a mão, recuou de repente, como se receasse que a minha oferta não fosse sincera ou que eu já estivesse arrependido.
No mesmo instante, porém, foi derrubado por outro pequeno selvagem, saído não sei de onde e tão perfeitamente semelhante ao primeiro que se teria podido tomá-lo por um irmão gêmeo. Rolaram ambos no chão, disputando a valiosa presa, sem que nenhum quisesse sacrificar a metade pelo irmão. O primeiro, exasperado, puxou o segundo pelos cabelos; este pegou-lhe a orelha com os dentes e cuspiu-lhe uma migalha sangrenta com uma soberba praga regional. O legítimo proprietário do bolo tentou cravar as unhinhas nos olhos do usurpador; este, por sua vez, empregou toda a força para estrangular o adversário com uma das mãos, enquanto com a outra tratava de meter no bolso o prêmio do combate.
Mas, reanimado pelo desespero, o vencido endireitou-se e fez rolar o vencedor por terra, com uma cabeçada no estômago. Para quê descrever uma luta hedionda, que na verdade durou mais tempo do que pareciam permiti-lo aquelas forças infantis? O bolo viajava de mão em mão e mudava de bolso a cada instante. Mas, ai de mim! Mudava também de volume. Quando, por fim, exaustos, anelantes, ensanguentados, pararam ambos pela impossibilidade de continuar, já não havia, a dizer verdade, nenhum motivo de batalha: o pedaço de pão desaparecera, todo fragmentado em migalhas semelhantes aos grãos de areia com que se misturara.
Esse espetáculo anuviou-me a paisagem. A alegria calma em que minha alma se expandia, antes de ver aqueles pequeninos homens, desapareceu por completo. E assim fiquei por muito tempo, triste, repetindo-me sem cessar: — Há um soberbo lugar em que o pão se chama bolo, iguaria tão rara que é o suficiente para causar uma guerra perfeitamente fratricida!
Charles Baudelaire, in Pequenos poemas em prosa

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