Passando
ontem pela igreja de São José, e vendo-a menos guarnecida de fiéis
do que fora lícito esperar no dia da festa de seu orago, lembrei-me
do caso ocorrido há tempos em minha terra, e que tem lição.
Certo
Juca Ludovico, oficial de carpinteiro, acordou um dia com a alma
transformada. Começou por faltar ao serviço, a que era assíduo.
Surpreendendo a consorte, dirigiu-se ao botequim e pagou cerveja para
todos. Juca não era forreta, mas a libação matinal e coletiva não
tinha propósito. Aos que chegavam e inquiriam com o olhar, ele ia
dizendo: “Abanquem-se e tomem parte na minha satisfação. Vão
acontecer grandes coisas por meu arbítrio, e quero estar à altura
dos acontecimentos”. Os ouvintes pasmavam e bebiam. Juca não
entrava no miúdo, falava em honras, feitos e bens, sem
particularizá-los, mas sentia-se que pisara a caçamba de altas
cavalarias.
O
pior é que não endoidecera; estava dominado pelo Capeta, que no
sono lhe inflara o apetite de glória. Raciocinava perfeitamente nas
coisas triviais, insistindo porém em que sua vida mudara. Ofereceu
emprego a um, deu a outro uma fazenda de gado. Pedia apenas que
esperassem duas semanas, tempo bastante para receber do Banco da
Inglaterra o ouro que ali devia estar à sua disposição, e que de
boa mente partilharia com amigos.
Pode-se
descrer do juízo de um homem que rasgue dinheiro, não porém do de
outro que reparta dinheiro conosco. Os amigos de Juca exultaram,
levando-o em charola ao largo da Matriz, onde ele falou às
autoridades e ao povo. Aquelas seriam substituídas e Juca assumiria
o governo geral de Minas, mas seria magnânimo, ninguém temesse
perseguição, a goiabada era de todos, ele trazia uma palavra de
amor universal. Disfarçado em fogueteiro, e por via das dúvidas
embuçado na capa preta, o Diabo misturava-se com a turba, sorria,
esfregava os cascos. Apenas dona Neném, senhora idosa e devota,
olhava tudo de beiço reprovador, e interpelou-o: “Juca, meu
sobrinho, de onde te vem tamanho poder?”. Ele não se deu por
achado: “Ora, minha tia, então não vê que é de meu padrinho sr.
são José? Ele me procurou esta noite e disse: Vai e faze brilhar o
nosso nome. És a flor dos Josés, e por tua valia serei cultuado na
terra toda”. “Pois eu duvido”, retrucou dona Neném. “Vamos
entrar na igreja e conversar com são José.”
Dona
Neném, Juca e o povo entraram de roldão. O altar do santo nem
estava florido; era todo humildade e recato. Juca postou-se em relevo
e soltou o verbo: “Aqui está, meu padrinho, a multidão que eu
trouxe para servi-lo. Se o senhor me prestigiar, como espero, eles
levarão sua imagem por toda parte e receberão grandezas, enquanto a
corporação dos carpinteiros ganhará foros universitários e
constituirá o Senado da República. Faça um sinal com a ponta do
dedo mindinho, e minha tia se convencerá”.
O
dedo de são José não se mexeu. “São José, continuou Juca,
nosso trato está firme. Estou cumprindo com o prometido, agora é a
sua vez. Preciso de meios para agir. A propaganda custa caro. Tenho
de distribuir mercês a amigos e inimigos, atrair incrédulos.
Desdobre em quatro o cartório do Saldanha e nomeie os meus amigos
mais chegados, que serão meus quatro evangelistas. Para cada fiel
que nos acompanhar, quero uma presidência de boa empresa. Depende do
senhor, padrinho.”
São
José não respondia. “Será possível que o senhor não escute
bem? Uma palavrinha sua, e irei a uma cadeia de rádio e televisão
iniciar a campanha de esclarecimento universal.”
O
santo, na moita. “Ele está assim porque ainda não me lembrei de
melhorar o seu altarzinho, ora veja! Fique tranquilo, meu santo. Vou
fazer-lhe uma igreja de ouro e em volta construirei uma cidade
inteira em sua honra; será a primeira do mundo e nela só habitarão
os eleitos, sob minha chefia. Combinado? Agora mova o dedinho.”
A
expectativa era enorme. Dona Neném, trêmula, chegada ao altar, viu,
horrorizada, mover-se, não o dedo, mas a mão inteira de são José.
E estendendo-se o braço, a mão pousou no ombro de Juca. “Estão
vendo?”, parecia dizer o olhar deste, pois a boca, maravilhada, não
piava. E são José sorrindo, mansamente, disse estas palavras:
“Juca, volte à oficina, pegue da enxó e da plaina e trabalhe como
de costume. Essas coisas não lhe ficam bem, meu filho”. Ouviu-se
um estouro no adro. Era o Diabo que explodia, de ódio.
Recordando
este fato, absolutamente verídico, compreendi por que são José
está sendo pouco visitado nesta época. É santo de mediania e
modéstia, não de exageros, acha que essas coisas não ficam bem:
ele não é disso que anda por aí.
Carlos
Drummond de Andrade, in A bolsa & a vida
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