domingo, 23 de abril de 2017

Modéstia

Passando ontem pela igreja de São José, e vendo-a menos guarnecida de fiéis do que fora lícito esperar no dia da festa de seu orago, lembrei-me do caso ocorrido há tempos em minha terra, e que tem lição.
Certo Juca Ludovico, oficial de carpinteiro, acordou um dia com a alma transformada. Começou por faltar ao serviço, a que era assíduo. Surpreendendo a consorte, dirigiu-se ao botequim e pagou cerveja para todos. Juca não era forreta, mas a libação matinal e coletiva não tinha propósito. Aos que chegavam e inquiriam com o olhar, ele ia dizendo: “Abanquem-se e tomem parte na minha satisfação. Vão acontecer grandes coisas por meu arbítrio, e quero estar à altura dos acontecimentos”. Os ouvintes pasmavam e bebiam. Juca não entrava no miúdo, falava em honras, feitos e bens, sem particularizá-los, mas sentia-se que pisara a caçamba de altas cavalarias.
O pior é que não endoidecera; estava dominado pelo Capeta, que no sono lhe inflara o apetite de glória. Raciocinava perfeitamente nas coisas triviais, insistindo porém em que sua vida mudara. Ofereceu emprego a um, deu a outro uma fazenda de gado. Pedia apenas que esperassem duas semanas, tempo bastante para receber do Banco da Inglaterra o ouro que ali devia estar à sua disposição, e que de boa mente partilharia com amigos.
Pode-se descrer do juízo de um homem que rasgue dinheiro, não porém do de outro que reparta dinheiro conosco. Os amigos de Juca exultaram, levando-o em charola ao largo da Matriz, onde ele falou às autoridades e ao povo. Aquelas seriam substituídas e Juca assumiria o governo geral de Minas, mas seria magnânimo, ninguém temesse perseguição, a goiabada era de todos, ele trazia uma palavra de amor universal. Disfarçado em fogueteiro, e por via das dúvidas embuçado na capa preta, o Diabo misturava-se com a turba, sorria, esfregava os cascos. Apenas dona Neném, senhora idosa e devota, olhava tudo de beiço reprovador, e interpelou-o: “Juca, meu sobrinho, de onde te vem tamanho poder?”. Ele não se deu por achado: “Ora, minha tia, então não vê que é de meu padrinho sr. são José? Ele me procurou esta noite e disse: Vai e faze brilhar o nosso nome. És a flor dos Josés, e por tua valia serei cultuado na terra toda”. “Pois eu duvido”, retrucou dona Neném. “Vamos entrar na igreja e conversar com são José.”
Dona Neném, Juca e o povo entraram de roldão. O altar do santo nem estava florido; era todo humildade e recato. Juca postou-se em relevo e soltou o verbo: “Aqui está, meu padrinho, a multidão que eu trouxe para servi-lo. Se o senhor me prestigiar, como espero, eles levarão sua imagem por toda parte e receberão grandezas, enquanto a corporação dos carpinteiros ganhará foros universitários e constituirá o Senado da República. Faça um sinal com a ponta do dedo mindinho, e minha tia se convencerá”.
O dedo de são José não se mexeu. “São José, continuou Juca, nosso trato está firme. Estou cumprindo com o prometido, agora é a sua vez. Preciso de meios para agir. A propaganda custa caro. Tenho de distribuir mercês a amigos e inimigos, atrair incrédulos. Desdobre em quatro o cartório do Saldanha e nomeie os meus amigos mais chegados, que serão meus quatro evangelistas. Para cada fiel que nos acompanhar, quero uma presidência de boa empresa. Depende do senhor, padrinho.”
São José não respondia. “Será possível que o senhor não escute bem? Uma palavrinha sua, e irei a uma cadeia de rádio e televisão iniciar a campanha de esclarecimento universal.”
O santo, na moita. “Ele está assim porque ainda não me lembrei de melhorar o seu altarzinho, ora veja! Fique tranquilo, meu santo. Vou fazer-lhe uma igreja de ouro e em volta construirei uma cidade inteira em sua honra; será a primeira do mundo e nela só habitarão os eleitos, sob minha chefia. Combinado? Agora mova o dedinho.”
A expectativa era enorme. Dona Neném, trêmula, chegada ao altar, viu, horrorizada, mover-se, não o dedo, mas a mão inteira de são José. E estendendo-se o braço, a mão pousou no ombro de Juca. “Estão vendo?”, parecia dizer o olhar deste, pois a boca, maravilhada, não piava. E são José sorrindo, mansamente, disse estas palavras: “Juca, volte à oficina, pegue da enxó e da plaina e trabalhe como de costume. Essas coisas não lhe ficam bem, meu filho”. Ouviu-se um estouro no adro. Era o Diabo que explodia, de ódio.
Recordando este fato, absolutamente verídico, compreendi por que são José está sendo pouco visitado nesta época. É santo de mediania e modéstia, não de exageros, acha que essas coisas não ficam bem: ele não é disso que anda por aí.
Carlos Drummond de Andrade, in A bolsa & a vida

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