“Você
me pede notícias do Rio e dos acontecimentos, mas eu só posso
contar-lhe de minha praia. Não pense que comprei uma: a que eu
habito é de todos, e cada um a possui a seu modo. Questões de
limites, não as temos; vinte centímetros de separação entre as
barracas dá para que os vizinhos se ignorem oficialmente, como se
fossem antípodas. Com o evolver do sol, os círculos de sombra se
vão convertendo em elipses, o proprietário vê fugir-lhe a
propriedade, vai afinando, afinando, mas ele não faz um gesto para
detê-la. Nosso bem maior é o ar, e sua disponibilidade; e em
conexão com o ar, a massa líquida em que abrimos apenas um sulco de
homem, logo fechado. Ar, água e areia: eis nosso reino, que dá para
milhões.
À
força de matinarmos diante do mar, fomos nos desligando dos fatos
urbanos, nacionais e internacionais; por isso não o informo do que
se passa lá longe, isto é, para dentro da calçada da avenida
Vieira Souto; este boletim é estritamente praiano, e até que não
padece falta de assunto. Nossos assuntos, virados e revirados como
seixos rolantes que se tornam cada dia mais polidos e aptos a
refletir e concentrar a chispa do sol, são os que realmente
interessam à pequena comunidade de que me tornei humilde fragmento.
Assim, não discutimos dinheiro, política, mulher, átomo e outras
matérias de igual aspereza. Nosso assunto primo é a temperatura da
água, como está hoje, em comparação com ontem e anteontem e com o
dia mais ou menos remoto em que estava um gelo antártico ou um
vulcão em serviço, você se lembra, ah não, o dia em que esteve
mais gelado em minha vida foi há dois anos, 24 de fevereiro, saí
com cãibra na alma etc… É muito importante saber se a água está
boa; e em seguida, esticar-se na areia e deixar que ela continue
assim ou mude, tanto faz.
Se
a água está limpa, é outro ponto de alta indagação, que não
deixa de nos preocupar, e há de haver sempre alguém contando que já
viu boiarem longas placas de azul-veronês, vermelho sangue-de-boi ou
camisa americana, e outras tintas; como quem viu o mar todo preto,
carvão diluído, que aderia à pele e nem a lixa mais raspante o
descarvoava; o que se lamenta é a sujeira comum, embora rara nestas
paragens: papel de jornal, invólucros de sorvete, roupa em trapos,
ossos de despacho, para só falar do sujo contável, que o outro…
Emigrados de postos distantes contam que certa onda de graxa chegara
até eles, onda que certa manhã se detivera em nossas paragens,
lembrando navio submerso. Interessa-nos o movimento geral das praias,
e a interligação dos fenômenos.
Também
nos importa o que o mar traz consigo até a arrebentação, coisas
tão várias e próprias de seus armazéns, como a enorme arraia cor
de lona de circo, que admiramos ainda viva, debatendo-se, rabeando,
protestando. Os mais naturalistas assistiram à demolição do bicho,
lenta carnagem; o rabo foi devolvido ao mar alto, por dois homens que
nadaram com um só braço, empunhando o troféu, enquanto a carcaça
era arrastada majestosamente por um trator, praia afora.
Idem
nos importamos muito com o grau de nossas respectivas combustões
pigmentares, e esse (ou essa) eleva a coxa, aponta as espáduas,
demonstra a linha branca. Sentimos a infinita e intransferível
importância do nosso corpo pessoal, sabemo-lo feliz, e a felicidade
interior vai de arrastão, se é que alguém a procura ainda. Os
corpos são pedaços móveis de um todo verde, moreno, quente,
ventoso, salino. Confesso que não desdenhamos de todo as
propriedades femininas de alguns desses corpos, indolentemente
expostos e intocáveis. São elementos do universo, que se destacam,
mas sempre dentro da natureza, e não do sensual urbano.
Também
a literatura é rigorosamente proscrita. Um noviço, que murmurava:
“La mer, la mer toujours recommencée…”, foi lançado na
água, de ponta-cabeça, e até hoje não deu notícia.
Carlos
Drummond de Andrade, in A bolsa & a vida
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