domingo, 2 de abril de 2017

Gazeta praiana

Você me pede notícias do Rio e dos acontecimentos, mas eu só posso contar-lhe de minha praia. Não pense que comprei uma: a que eu habito é de todos, e cada um a possui a seu modo. Questões de limites, não as temos; vinte centímetros de separação entre as barracas dá para que os vizinhos se ignorem oficialmente, como se fossem antípodas. Com o evolver do sol, os círculos de sombra se vão convertendo em elipses, o proprietário vê fugir-lhe a propriedade, vai afinando, afinando, mas ele não faz um gesto para detê-la. Nosso bem maior é o ar, e sua disponibilidade; e em conexão com o ar, a massa líquida em que abrimos apenas um sulco de homem, logo fechado. Ar, água e areia: eis nosso reino, que dá para milhões.
À força de matinarmos diante do mar, fomos nos desligando dos fatos urbanos, nacionais e internacionais; por isso não o informo do que se passa lá longe, isto é, para dentro da calçada da avenida Vieira Souto; este boletim é estritamente praiano, e até que não padece falta de assunto. Nossos assuntos, virados e revirados como seixos rolantes que se tornam cada dia mais polidos e aptos a refletir e concentrar a chispa do sol, são os que realmente interessam à pequena comunidade de que me tornei humilde fragmento. Assim, não discutimos dinheiro, política, mulher, átomo e outras matérias de igual aspereza. Nosso assunto primo é a temperatura da água, como está hoje, em comparação com ontem e anteontem e com o dia mais ou menos remoto em que estava um gelo antártico ou um vulcão em serviço, você se lembra, ah não, o dia em que esteve mais gelado em minha vida foi há dois anos, 24 de fevereiro, saí com cãibra na alma etc… É muito importante saber se a água está boa; e em seguida, esticar-se na areia e deixar que ela continue assim ou mude, tanto faz.
Se a água está limpa, é outro ponto de alta indagação, que não deixa de nos preocupar, e há de haver sempre alguém contando que já viu boiarem longas placas de azul-veronês, vermelho sangue-de-boi ou camisa americana, e outras tintas; como quem viu o mar todo preto, carvão diluído, que aderia à pele e nem a lixa mais raspante o descarvoava; o que se lamenta é a sujeira comum, embora rara nestas paragens: papel de jornal, invólucros de sorvete, roupa em trapos, ossos de despacho, para só falar do sujo contável, que o outro… Emigrados de postos distantes contam que certa onda de graxa chegara até eles, onda que certa manhã se detivera em nossas paragens, lembrando navio submerso. Interessa-nos o movimento geral das praias, e a interligação dos fenômenos.
Também nos importa o que o mar traz consigo até a arrebentação, coisas tão várias e próprias de seus armazéns, como a enorme arraia cor de lona de circo, que admiramos ainda viva, debatendo-se, rabeando, protestando. Os mais naturalistas assistiram à demolição do bicho, lenta carnagem; o rabo foi devolvido ao mar alto, por dois homens que nadaram com um só braço, empunhando o troféu, enquanto a carcaça era arrastada majestosamente por um trator, praia afora.
Idem nos importamos muito com o grau de nossas respectivas combustões pigmentares, e esse (ou essa) eleva a coxa, aponta as espáduas, demonstra a linha branca. Sentimos a infinita e intransferível importância do nosso corpo pessoal, sabemo-lo feliz, e a felicidade interior vai de arrastão, se é que alguém a procura ainda. Os corpos são pedaços móveis de um todo verde, moreno, quente, ventoso, salino. Confesso que não desdenhamos de todo as propriedades femininas de alguns desses corpos, indolentemente expostos e intocáveis. São elementos do universo, que se destacam, mas sempre dentro da natureza, e não do sensual urbano.
Também a literatura é rigorosamente proscrita. Um noviço, que murmurava: “La mer, la mer toujours recommencée…”, foi lançado na água, de ponta-cabeça, e até hoje não deu notícia.
Carlos Drummond de Andrade, in A bolsa & a vida

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