quinta-feira, 13 de abril de 2017

Felicidade pessoal

Toda a gente tem o seu método de interpretar a seu favor o balanço das suas impressões, para que daí resulte de algum modo aquele mínimo de prazer necessário às suas existências quotidianas, o suficiente em tempos de normalidade. O prazer da vida de cada um pode ser também constituído por desprazer, essas diferenças de ordem material não têm importância; sabemos que existem tantos melancólicos felizes como marchas fúnebres, que pairam tão suavemente no elemento que lhes é próprio como uma dança no seu. Talvez também se possa afirmar, ao contrário, que muitas pessoas alegres de modo nenhum são mais felizes do que as tristes, porque a felicidade é tão cansativa como a infelicidade; mais ou menos como voar, segundo o princípio do mais leve ou mais pesado do que o ar. Mas haveria ainda uma outra objeção: não terá razão aquela velha sabedoria dos ricos segundo a qual os pobres não têm nada a invejar-lhes, já que é pura fantasia a ideia de que o seu dinheiro os torna mais felizes? Isso só lhes imporia a obrigação de encontrar um sistema de vida diferente do seu, cujo orçamento, em termos de prazer, fecharia apenas com um mínimo excedente de felicidade, que eles, assim como assim, já têm.
Teoricamente, isto significa que uma família sem abrigo, se não morrer congelada durante uma noite gélida de Inverno, aos primeiros raios de sol da manhã se sentirá tão feliz como o homem rico que tem de sair da sua cama quente. Na prática, o que importa é que cada um carrega pacientemente, como um burro, a carga que lhe foi posta no lombo; e um burro que se sente um pouco mais forte do que a sua carga é um burro feliz. E de facto esta é a mais fiável definição de felicidade pessoal a que se pode chegar enquanto olharmos apenas para o caso do burro. Na verdade, porém, a felicidade pessoal (ou o equilíbrio, a satisfação ou qualquer outro nome que se dê ao objetivo automático e mais íntimo de uma pessoa) é tanto uma realidade fechada quanto uma pedra num muro ou uma gota de água num rio atravessado pelas forças e tensões do todo. Aquilo que uma pessoa faz e sente é insignificante quando comparado com tudo o que tem de pressupor que outros fazem e sentem normalmente por ela. Ninguém vive apenas o seu próprio equilíbrio, toda a gente se apoia no equilíbrio dos estratos à sua volta; deste modo, na pequena fábrica de prazer de cada pessoa intervém um sistema de crédito moral altamente complexo, (...) porque ele participa tanto do balanço espiritual da totalidade como do indivíduo.
Robert Musil, in O homem sem qualidades

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