O
inseto apareceu sobre a mesa como todos os insetos: sem se fazer
anunciar. E sem que se atinasse por que motivo escolhera aquele
pouso. Não parecia bicho da noite, desses que não podem ver lâmpada
acesa, e logo se aproximam, fascinados. Era uma coisinha
insignificante, encolhida sobre o papel e ali disposta,
aparentemente, a passar o resto de sua vida mínima, sem explicação,
sem sentido para ninguém.
Ninguém?
O homem, que tem o hábito de ficar altas horas entre papéis e
livros, sentiu-lhe a presença e pensou imediatamente em esmagar o
intruso. Chegou a mover a mão. Não o mataria com os dedos, mas com
outra folha de papel.
Deteve-se.
Não seria humano liquidar aquele bichinho só porque estava em lugar
indevido, sem fazer mal nenhum. Inseto nocivo? Talvez. Mas sua
ignorância em entomologia não lhe dava chance de decidir entre a
segurança e a injustiça. E na dúvida, era melhor deixar viver
aquilo, que nem nome tinha para ele. Com que direito aplicaria pena
de morte a um desconhecido infinitamente desprovido de meios sequer
para reagir, quanto mais para explicar-se?
O
inseto parecia pouco ligar para ele, juiz autonomeado e algoz em
perspectiva. Dormia ou modorrava sobre a mesa literária,
indiferente, simplesmente. Chegara por acaso, sumiria daí a pouco;
deixá-lo viver a seu modo, que era um viver anônimo, desligado de
inquietações humanas, invariável dentro da natureza: curto e
pobre.
Uma
ternura imprevista brotou no homem pelo animálculo que momentos
antes pensara em destruir. Como se alguém viesse de longe para
vê-lo, fazer-lhe companhia, em sua noite de trabalho. Não
conversava, não incomodava, era uma questão apenas de estar à sua
frente, imóvel, em secreta comunhão. Ele fora o escolhido de um
inseto, que poderia ter voado para outro apartamento, onde houvesse
outra vigília de escrevedor de coisas, mas aquela fora a casa de sua
preferência.
A
menos que o acaso determinasse aquele encontro. Era possível. O
inseto voara a esmo. O homem quis aferrar-se a esta hipótese, bem
plausível. Já se envergonhava de ter envolvido o estranho numa aura
de sensibilidade, e talvez voltasse ao impulso inicial de eliminação.
A essa altura, espantou-se com a mobilidade de suas reações.
Passava de verdugo a sentimentalão, depois a observador cético e
crítico, finalmente perdia-se na confusão das várias atitudes que
podemos assumir diante de um inseto instalado na mesa de um
escritório, a uma hora que ainda não é madrugada mas já é noite
alta e de sono profundo.
Aquietou-se,
afinal, na contemplação do “bicho da terra tão pequeno”. Era
alguma coisa parecida com um botão marrom rombudo, que tivesse olhos
e um projeto de asas — o suficiente para deslocar-se no espaço em
aventuras breves. E não era uma aventura simples: a altura do
edifício exigia esforço grande para chegar da árvore até o décimo
primeiro andar. Entretanto, o botão vivo o fizera, e ali estava,
tranquilo ou cansado, à mercê do gigante indeciso, que procurava
entender, não propriamente sua presença, mas a turbação íntima
que essa presença despertava no gigante.
O
homem não pensou em recorrer às enciclopédias para identificar o
visitante. Ainda que chegasse a identificá-lo como espécie, não
avançaria muito no conhecimento do indivíduo, que era único por
ser entre todos o que o visitava. E na multidão de insetos,
imagináveis e inimagináveis, só lhe interessava aquele,
companheiro noturno vindo de não se sabe onde, a caminho de ignorado
rumo.
Já
não escrevia. Olhava. Mirava. Sentia-se também olhado e mirado,
quando o inseto fez ligeiro movimento que o colocou diretamente sob o
foco de luz. Seria exagero encontrar expressão naqueles dois
pontinhos negros e reluzentes, mas o fato é que deles parecia vir
para os olhos do homem um sinal de atenção ou curiosidade. E os
dois, homem e inseto, assim ficaram longo tempo, na muda inspeção,
ou conversa, que não conduzia a nada.
A
nada? Muitas conversas entre homens também não levam a resultado
algum, mas há sempre a esperança de um entendimento que pode vir
das palavras ou de uma troca desprevenida de olhares. E o olhar pode
penetrar mais fundo que as palavras. O homem sabia disto. Mas aí
notou que, sabendo falar alguma coisa, não era perito em ver
diretamente o real. A figura do inseto dizia-lhe pouco. Dos dois,
talvez fosse ele, homem, o que menos habilitado se achava para uma
forma de comunicação, aquém — ou além — dos códigos
tradicionais.
Distraiu-se
avaliando essas limitações e, ao voltar à observação do
visitante, este havia desaparecido, decepcionado talvez com a
incomunicabilidade dos gigantes. Não é todas as noites que um
inseto nos visita. E, se consegue insinuar-nos alguma coisa, esta
nunca jamais foi captada para os homens que merecem crédito; só os
ficcionistas é que costumam registrá-la, mas quem leva a sério
ficcionistas?
Carlos
Drummond de Andrade, in Boca de luar
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