domingo, 12 de março de 2017

Uns cobres extras

Arranjei umas escritas à noite, para defender uns cobres extras. O emprego dá pouco. Perto de casa, um escritório de contabilidade. Meu irmão:
É, já era hora de tomar juízo.
Meu irmão só pensa em seriedade.
Cá no bairro minha fama andava péssima. Aluado, farrista, uma porção de coisas que sou e que não sou. Depois que arrumei ocupação à noite, há senhoras mães de família que já me cumprimentam. Às vezes, aparecem nos rostos sorrisos de confiança. Acham, sem dúvida, que estou melhorando.
Bom rapaz. Bom rapaz.
Como se isto estivesse me interessando…
Faço serão, fico até tarde. Números, carimbos, coisas chatas. Dez, onze horas. De quando em vez levo cerveja preta e levo Huxley. (Li duas vezes o Contraponto e leio sempre.) Não parei na várzea da U.M.P.A, nas lições de distribuição de passes e centros que Biluca me dava.
Deixando o escritório. A madrugada costuma enegrecer tudo. Casas e homens. Só as minhas tampinhas reluzem na calçada. Contraponto debaixo de um braço. Garrafa vazia de cerveja preta no outro. Assobiando, mãos nos bolsos.
Mamãe costuma dizer que eu não sou dos mais feios. Bem — veio morar cá no bairro uma professorinha solteira, muito chata. Rapazes lhe dão em cima por causa de um dote, ou de coisa parecida. Não sei. A vida dos outros nunca me interessou. Nem a dela, embora viva me provocando. Quer casamento, com certeza. Olho para a mulher, para os modos, para o anel… Quer casamento. Eu não.
Dias desses, no lotação. A tal estava a meu lado querendo prosa. Tentava, uma olhadela, nos cantos os olhos se mexendo. Um enorme anel de grau no dedo. Ostentação boba, é moça como qualquer outra. Igualzinha às outras, sem diferença. E eu me casar com um troço daquele?… Parece-me que procurava conversa, por causa dum Huxley que viu repousando nos meus joelhos. Eu, Huxley e tampinhas somos coincidências. Que se encontraram e que se dão bem. Perguntou o que eu fazia na vida. A pergunta veio com jeito, boas palavras, delicada, talvez não querendo ofender o silêncio em que eu me fechava. Quase respondi…
Olhe: sou um cara que trabalha muito mal. Assobia sambas de Noel com alguma bossa. Agora, minha especialidade, meu gosto, meu jeito mesmo, é chutar tampinhas da rua. Não conheço chutador mais fino.
Mas não sei. A voz mulata no disco me fala de coisas sutis e corriqueiras. De vez em quando um amor que morre sem recado, sem bilhete. Ciúme, queixa. Sutis e corriqueiras. Ou a cadência dos versos que exaltam um céu cinzento, uma luva, um carro de praça… Se ouço um samba de Noel… Muito difícil dizer, por exemplo, o que é mais bonito — o “feitio de oração” ou as minhas tampinhas.
João Antônio, in Afinação e a arte de chutar tampinhas

Nenhum comentário:

Postar um comentário