Quem
principiou a história do papagaio foi Cesária, mas os homens se
aproximaram da esteira onde ela cochichava com Das Dores e depois de
alguns minutos Alexandre concluiu a narração. Cesária falou assim:
— O
nosso casamento foi pouco depois da vaquejada. Você se lembra, Das
Dores? O caso da novilha se espalhou de repente e o nome de Alexandre
correu de boca em boca. Ele não disse isto porque não gosta de
pabulagem, mas acredite que ficou o homem mais importante do sertão.
Os fazendeiros tiravam o chapéu quando passavam por ele e
cumprimentavam com respeito: — “Como vai a obrigação, major
Alexandre?” É isto, Das Dores. Alexandre num instante virou major.
Meu pai era pessoa de muito cabedal, e todo mundo por aquelas bandas
queria casar comigo. Eu não fazia conta de ninguém, mas quando
Alexandre se apresentou, bem vestido e bem-falante, quebrou-me as
forças. Vinha preparado, com um rebenque de cabo de ouro, esporas de
ouro...
—
Montado no bode? perguntou Das Dores.
— Não,
respondeu Cesária. O bode era para as vaquejadas. Vinha num cavalo
baixeiro, arreado com arreios de ouro, espelhando. Só queria que
você visse, Das Dores. Meu pai ficou muito satisfeito com o pedido e
eu concordei logo: — “Se vossemecê acha que deve ser, está
certo.” Marcou-se o dia e preparou-se o enxoval, que foi uma
beleza, Das Dores. Só queria que você visse. Um enxoval em que
trabalharam todas as costureiras do lugar. A festa do nosso casamento
durou uma semana. Muita dança, muita bebida, muita comedoria. Não
ficou peru nem porco para semente. Veio o vigário, veio o promotor,
veio o comandante do destacamento, veio o prefeito. Meu pai estava-se
estragando, mas era senhor de muitas posses e dizia: — “Festa é
festa. Mais vale um gosto que quatro vinténs.” Quando os
derradeiros convidados se retiraram, fomos morar na nossa casa nova,
uma casa bonita como as da cidade. E o pai de Alexandre deu a ele um
baú cheio de moedas de ouro. Aí era preciso a gente tratar da vida.
Eu vendia e comprava, dirigia as coisas direito. Sempre tive cadência
para as arrumações. Mas as viagens e as transações de muito
dinheiro quem fazia era Alexandre. Na primeira viagem dele encomendei
um papagaio. Queria um papagaio falador, custasse o que custasse.
Agora você conta o resto, Alexandre.
— Não
senhora, respondeu o marido. Você não começou a história? Então
acabe.
— Não
senhor, replicou Cesária. Comecei porque podia começar, mas acabar
não acabo. Contei a minha parte, que dei a encomenda, mas quem
comprou o papagaio foi você.
Depois
de muitas razões, Alexandre se resolveu a tomar a palavra.
— Em
vista disso, eu conto. Isto é, conto o fim da história, que o
princípio os senhores já sabem. E nesse princípio não acrescento
nada, porque tudo quanto Cesária disse é a pura verdade. Amarro o
negócio no ponto em que ela ficou. Realmente esse caso não tem
importância, e até nem sei como Cesária foi mexer nele. Papagaio é
bicho besta, ninguém presta atenção a lorotas de papagaio. Esse
era melhor que os outros, sem dúvida. Eu nem me lembrava dele, mas
como a patroa foi desenterrá-lo, vá lá. Escutem. Estávamos na
viagem, não é isto? Viagem do sertão à mata, para vender gado.
Como era a primeira que eu fazia, a separação foi custosa. Cesária
chorou, deu-me conselhos, afinal se aquietou com a esperança de
possuir um louro falador. Prometer eu não prometia, que não ia
oferecer a minha mulher um bicho ordinário, mas se aparecesse coisa
boa, Cesária estava servida. Separei o gado, escolhi os tangerinos,
despedi-me da mulher depois de muitos poréns e tomei o caminho do
sul, sempre aumentando a boiada com o que havia de melhor por aquelas
redondezas. Aves de pena vi em quantidade, araras, ararões, e
canindés, mas viventes de pouca fala. Procurei, pedi informações —
não achei nada que servisse. Larguei a encomenda e decidi levar uma
lembrança diferente para Cesária, volta de ouro ou corte de pano
fino. Ora um dia de calor bati numa porta, com vontade de pedir água:
— “Ô de casa!” Uma voz de homem perguntou lá de dentro: —
“Ô de fora! Quem é?” E eu respondi: — “É de paz. O senhor
faz favor de arranjar uma sede de água para um viajante.” — “Não
posso, tornou a voz. Não posso porque estou amarrado.”
Espantei-me: — “Como? Quem amarrou o senhor? Diga, que eu
desamarro.” — “Não se incomode não, moço, foi a resposta.
Aqui em casa o costume é este. Vivo acorrentado.” — Nessa altura
uma velha apareceu com um caneco de água e falou: — “Cala a
boca. Deixa de tomar confiança com quem tu não conheces.” Bebi e
ia agradecer quando percebi que ela se dirigia a um papagaio que
batia as asas, na gaiola pendurada à parede. Não é que eu tinha
sido embromado, comendo o bicho por gente? — “Sinha dona,
perguntei, vossemecê me vende esse louro?” — “Não vendo não,
moço, é de estimação.” Eu cantei a velha: — “Que seja de
estimação não duvido. Mas pense direito, sinha dona. Quem tem vida
morre. Se botarem mau-olhado nele, vossemecê fica sem mel nem
cabaço. Eu pago bem. Faça preço no papagaio, dona.” A velha
endureceu, depois chegou às boas e acabou pedindo pelo bicho um
despropósito. Discutimos e findamos o ajuste, comprei o papagaio por
quinhentos e cinquenta e quatro mil e setecentos réis. Vejam que
dinheirão. Quinhentos e cinquenta e quatro mil e setecentos. Bem.
Recebi a gaiola e fiquei atrapalhado. Como havia de levá-la numa
viagem que ia durar meses? Depois de refletir, desocupei uma bolsa de
roupa, fiz uns buracos nela e meti ali o papagaio, que protestou,
muito contrariado. Arrumei a bolsa no meio de uma carga e tocamos
para a frente. Onde andei e quanto ganhei não preciso contar, basta
dizer que a boiada se vendeu e fiz bom negócio. Conheci homens de
consideração e vi sobrados. Quando voltei, trazia um surrão cheio
de ouro e cargas de mantimentos. Dei uma festa quase tão grande como
a do casório. O povo da rua se admirou, meu pai e meu sogro
arregalaram os olhos. Eu de correntão no peito, eu lorde, mandando
abrir caixas de bebidas. Quem quisesse beber bebia até cair.
Dinheiro não faltava. Enfim tudo se acomodou, o pessoal saiu e nós
fomos endireitar a casa, varrer, lavar, limpar, arranjar as coisas.
Cesária passou um dia arrumando a bagagem, abrindo malas e guardando
troços nos armários. No meio do trabalho me chamou: — “Está
aqui uma bolsa furada, Alexandre. Que é isto?” E eu me lembrei: —
“Ai, Cesária! É o papagaio. Tranquei o papagaio na bolsa.
Coitado. Esqueci-me dele e o pobre viajou sem comer.” Corri mais
que depressa e fui abrir a bolsa. Encontrei o infeliz nas últimas,
enrolado num canto, feio como um pinto molhado. Cesária trouxe um
pires de leite, mas era tarde, não havia jeito não. O papagaio
olhou para mim, balançou a cabeça, levantou-se tremendo,
encorujado, e disse baixinho: — “Sim senhor, seu major, isto não
é coisa que se faça.” Amunhecou e morreu.
Graciliano
Ramos, in Histórias
de Alexandre
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirQual a época que foi escrito?
ResponderExcluirporn
ResponderExcluirstephen curry é pica
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