quinta-feira, 30 de março de 2017

O recado do morro (trecho inicial)

Sem que bem se saiba, conseguiu-se rastrear pelo avesso um caso de vida e de morte, extraordinariamente comum, que se armou com o enxadeiro Pedro Orósio (também acudindo por Pedrão Chãbergo ou Pê-Boi, de alcunha), e teve aparente princípio e fim, num julho-agosto, nos fundos do município onde ele residia; em sua raia noroesteã, para dizer com rigor.
Desde ali, o ocre da estrada, como de costume, é um S, que começa grande frase. E iam, serra-acima, cinco homens, pelo espigão divisor. Dia a muito menos de meio, solene sol, as sombras deles davam para o lado esquerdo.
Debaixo de ordem. De guiador — a pé, descalço — Pedro Orósio: moço, a nuca bem-feita, graúda membradura; e marcadamente erguido: nem lhe faltavam cinco centímetros para ter um talhe de gigante, capaz de cravar de engolpe em qualquer terreno uma acha de aroeira, de estalar a quatro em cruz os ossos da cabeça de um marruás, com um soco em sua cabeloura, e de levantar do chão um jumento arreado, carregando-o nos braços por meio quilômetro, esquivando-se de seus côices e mordidas, e sem nem por isso afrouxar do fôlego de ar que Deus empresta a todos.
Seguindo-o, a cavalo, três patrões, entrajados e de limpo aspecto, gente de pessôa. Um, de fora, a quem tratavam por seo Alquiste ou Olquiste — espigo, alemão-rana, com raro cabelim barba-de-milho e cara de barata descascada. O sol faiscava-lhe nos aros dos óculos, mas, tirados os óculos, de grossas lentes, seus olhos se amaciavam num aguado azul, inocente e terno, que até por si semblava rir, aos poucos se acostumando com a forte luz daqueles altos. Calçava botas cor de chocolate, de um novo feitío; por cima da roupa clara, vestia guarda-pó de linho, para verde; traspassava a tiracol as correias da codaque e do binóculo; na cabeça um chapéu de palha de abas demais de largas, arranjado ali na roça. Enxacoco e desguisado nos usos, a tudo quanto enxergava dava um mesmo engraçado valor: fosse uma pedrinha, uma pedra, um cipó, uma terra de barranco, um passarinho atôa, uma môita de carrapicho, um ninhol de vêspos.
Segundo, um frade louro — frei Sinfrão — desses de sandália sem meia e túnica marrom, que têm casa de convento em Pirapora e Cordisburgo. Também trazia, sobre o hábito, um guarda-pó, creme; e punha chapéu branco, de pano mole. Relia o breviário, assim mesmo montado, e fumava charuto. Falava completo a língua da gente, porém sotaqueava.
Com eles, seo Jujuca do Açude, fazendeiro de gado, e filho de fazendeiro, de seu Juca Vieira, com apelido seu Juca do Açude, da Fazenda do Açude, para lá atrás do Saco do Sãjoão.
Derradeiro, outro camarada — a cavalo esse, e tangendo os burros cargueiros —: um Ivo, Ivo de Tal, Ivo da Tia Merência.
De seu, o guia Pedro Orósio preferisse mesmo viajar a pé, ou talvez, culpa de seu tamanho, nem acharia cavalgadura que lhe assentasse. Mas ele era um sete-pernas. Abrindo passo muito extenso e ligeiro, e, tão forçoso, de corpo nunca se cansava. Por mais, aqueles ali não estavam apurados, iam jornada vagarosa. O louraça, seo Alquiste, parecia querer remedir cada palmo de lugar, ver apalpado as grutas, os sumidouros, as plantas do caatingal e do mato. Por causa, esbarravam a toda hora, se apeavam, meio desertavam desbandando da estrada-mestra.
De feito, diversa é a região, com belezas, maravilhal. Terra longa e jugosa, de montes pós montes: morros e corovocas. Serras e serras, por prolongação. Sempre um apique bruto de pedreiras, enormes pedras violáceas, com matagal ou lavadas. Tudo calcáreo. E elas se roem, não raro, em formas — que nem pontes, torres, colunas, alpendres, chaminés, guaritas, grades, campanários, parados animais, destroços de estátuas ou vultos de criaturas. Por lá, qualquer voz volta em belo eco, e qualquer chuva suspende, no ar de cristal, todo tinto arco-íris, cor por cor, vivente longo ao solsim, feito um pavão. Umas redondas chuvas ácidas, de grande diâmetro, chuvas cavadoras, recalcantes, que caem fumegando com vapor e empurram enxurradas mão de rios, se engolfam descendo por funis de furnas, antros e grotas, com tardo gorgôlo musical. Nos rochedos, os bugres rabiscaram movidas figuras e letras, e sus se foram. Pelas abas das serras, quantidades de cavernas — do teto de umas poreja, solta do tempo, a aguinha estilando salôbra, minando sem-fim num gotê-jo, que vira pedra no ar, se endurece e dependura, por toda a vida, que nem renda de torrõezinhos de amêndoa ou fios de estadal, de cera-benta, cera santa, e grossas lágrimas de espermacete; enquanto do chão sobem outras, como crescidos dentes, como que aquelas sejam goelas da terra, com boca para morder. Criptas onde o ar tem corpo de idade e a água forma pele muito fria, e a escuridão se pega como uma coisa. Ou lapinhas cheias de morcegos, que juntos chiam, guincham, porfiam. Largos ocos que servem de malhador ao gado, no refrio das noites, ou de abrigo durante as tempestades. Lapas, com salitrados desvãos, onde assiste, rodeada de silêncios e acendendo globos olhos no escuro, a coruja-branca-de-orêlhas, grande mocho, a estrige cor de pérolas — strix perlata . Cafurnas em que as andorinhas parte do ano habitam, fazendo ninho, pondo e tirando cria, depois se somem em bandos por este mundo, deixaram lá dentro só a ruiva molêja, às rumas, e sua ardida cheiração. Fim do campo, nas sarjetas entremontãs das bacias, um ribeirão de repente vem, desenrodilhado, ou o fiúme de um riachinho, e dá com o emparedamento, então cava um buraco e por ele se soverte, desaparecendo num emboque, que alguns ainda têm pelo nome gentio, de anhanhonhacanhuva. Vara, suterrão, travessando para o outro sopé do morro, ora adiante, onde rebrota desengulido, a água já filtrada, num bilo-bilo fácil, logo se alisando branca e em leves laivos se azulando, que qual polpa cortada de cajú. E mesmo córregos se afundam, no plão, sem razão, a não ser para poderem cruzar intactos por debaixo de rios, e remanam do túnel, ressurtindo, longe, e depressa se afastam, seguindo por terem escolhido de afluir a um rio outro. E lagôazinhas, em pontos elevados, são ao contrário de todas: se enchem na seca, e tempo-das-águas se esvaziam, delas mal se sabe. E nas grutas se achavam ossadas, passadas de velhice, de bichos sem estatura de regra, assombração deles — o megatério, o tigre-dente-de-sabre, a protopantera, a monstra hiena espélea, o páleo-cão, o lobo espéleo, o urso-das-cavernas —, e homenzarros, duns que não há mais. Era só cavacar o duro chão, de laje branca e terra vermelha e sal. Montes de ossos, de bichos que outros arrastavam para devorar ali, ou que massas d’água afogaram, quebrando-os contra as rochas, quando às manadas eles queriam fugir, se escondendo do Dilúvio. Agora, pelas penedias, escalam cardos, cactos, parasitas agarrantes, gravatás se abrindo de flores em azul e vermelho, azagaias de piteiras, o páu-d’óleo com raízes de escultura, gameleiras manejando como alavancas suas sapopemas, rachando e estalando o que acham; a bromélia cabelos-do-rei, epífita; a chita — uma orquídea; e a catleia, sofredora, rosíssima e rôxa, que ali vive no rosto das pedras, perfurando-as. Papagaios rouco gritam: voam em amarelo, verdes. Vez em vez, se esparrama um grupo de anús, coracoides, que piam pingos choramingas. O caracará surge, pousando perto da gente, quando menos se espera — um gaviãoão vistoso, que gutura. Por resto, o mudo passar alto dos urubús, rodeando, recruzando —; pela guisa esses sabem o que-há-de-vir.
Ao dito, seu Olquiste estacava, sem jeito, a cavalo não se governava bem. Tomava nota, escrevia na caderneta; a caso, tirava retratos. A gameleira grande está estrangulando com as raízes a paineira pequena! — ele apreciava, à exclama. Colhia com duas mãos a ramagem de qualquer folhinha campã sem serventia para se guardar: de marroio, carqueja, sete-sangrias, amorzinho-seco, pé-de-perdiz, joão-da-costa, unha-de-vaca-rôxa, olhos-de-porco, copo-d’água, língua-de-tucano, língua-de-teiú. Uma hora, revirou a correr atrás, agachado, feito pegador de galinha, tropeçando no bamburral e espichando tombo, só por ter percebido de relance, inho e zinho, fugido no balango de entre as moitas, o orobó de um nhambú. Outramão, ele desenhava, desenhava: de tudo tirava traço e figura leal. Daquelas cumeeiras, a vista vai de bela a mais, dos lados, se alimpa, treze, quinze, vinte, trinta léguas lonjura. — “Dá açôite de se ajoelhar e rezar…” — ele falou. Dava. E sorria de ver, singular, elas trepando pela reigada da vertente, as labaredas verdes dum canavial.
Saudou, em beira de capão, um tamanduá longo, saído em seu giro incerto; se não o segurassem, ia lá, aceitava o abraço? Mas bastantemente assentava no caderno, à sua satisfação. Quando não provia melhor coisa, especulava perguntas; frei Sinfrão, que se entendia na linguagem dele, repetia:
Quer saber donde você é, Pedrão. Se você nasceu aqui?
Não. Pê-Boi era de mais afastado, catrumano, nato num povoadim de vereda, no sertão dos campos-gerais. Homem de brejo de buritizal entre chapadas arenosas, terra de rei-trovão e gado bravo. E, mesmo agora, só se ajustara de vir com a comitiva era porque tencionavam chegar, mais norte, até ao começo de lá, e ele aproveitava, queria rever a vaqueirama irmã, os de chapéu-de-couro, tornar a escutar os sofrês cantando claro em bando nas palmas da palmeira; pelo menos pisar o chapadão chato, de vista descoberta, e cheirar outra vez o resseco ar forte daqueles campos, que a alma da gente não esquece nunca direito e o coração de geralista está sempre pedindo baixinho. Porque Pedro Orósio não era serviçal de seu Juca do Açude — ele trabucava forro, plantando à meia sua rocinha, colhia até cana e algodão.
Se você é solteiro ou casado, Pedro?
E frei Sinfrão mesmo sabia, já respondia, jocoso, linguajando. Que o Pedro era ainda teimoso solteiro, e o maior bandoleiro namorador: as moças todas mais gostavam dele do que de qualquer outro; por abuso disso, vivia tirando as namoradas, atravessava e tomava a que bem quisesse, só por divertimento de indecisão. Tal modo que muitos homens e rapazes lhe tinham ódio, queriam o fim dele, se não se atreviam a pegá-lo era por sensatez de medo, por ele ser turuna e primão em força, feito um touro ou uma montanha. Aquele mesmo Ivo, que evinha ali, e que de primeiro tão seu amigo fora, andava agora com ele estremecido, por conta de uma mocinha, Maria Melissa, do Cuba, da qual gostavam. E, a causa de outras, delas nem se lembrava, ali em Cordisburgo tinha o Dias Nemes, famanaz, virado contra ele no vil frio de uma inimizade, capaz de tudo. Com frequência, Pedro Orósio tirava do bolso um espelhinho redondo: se supria de se mirar, vaidoso da constância de seu rosto.
E quando é que você toma juízo, Pedro, e se casa?
Todos riam. Até o Ivo, que ria fazia, destornado. Seu Alquiste quis bater uma fotografia de Pedro Orósio: recomendou que ele ficasse teso, descidos os braços. — “Grande… Muito grande…” — falou. — “Bom para soldado!” De por si sem acanhamento nenhum, antes saído, e mais ainda se espiritando com aquele regozijo geral, o Pedro prosapiou graça de responder, sem quebra de respeito — que perguntassem ao outro se na terra dele as moças eram bonitas, pois gostava era de se casar com uma assim: de cara rosada, cabelo amarelo e olho azul…
Guimarães Rosa, in No Urubuquaquá, no Pinhém

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