Mas
acampados tão perto, e fazendo grandes obras nos terrenos da velha
chácara de Júlio Barbosa, era natural que os homens de vez em
quando esbarrassem com alguém da cidade. Isso aconteceu com
Geminiano Dias, proprietário de uma carroça de aluguel. Geminiano
estava carreando estrume para horta, numa das viagens foi interpelado
na cerca do pasto por um homem alto, queixudo, de cabelo cortado à
escovinha:
—
Negociar a carroça, caboclo?
Geminiano
não gostou dos modos, e para mostrar que não tinha gostado
continuou viagem, sem parar nem olhar. O homem avançou para o lanço
seguinte da cerca, insistiu:
—
Negociar a carroça? Pago bem.
— Nhor
não — respondeu Geminiano por muito favor.
O
homem não desistia. Avançou mais um lanço, falou mandando:
— Pare
um pouco. Pode parar não?
— Posso
não. Se pudesse, eu ficava parado em casa.
O
homem mergulhou rápido por baixo da cerca, deu uma carreirinha e
cortou a frente da carroça.
— Um
momento, rapaz — disse. — Quando um burro fala, o outro para para
escutar.
— Não
entendo conversa de burro — disse Geminiano. — Com burro eu falo
é com isto aqui. — E mostrou o chicote erguido.
Nessa
altura o burro já tinha parado espontaneamente. O homem alisou o
focinho dele, pensando. Resolveu não pegar o peão. Quem está em
posição mais alta, e armado de chicote, leva vantagem. Negociou:
— Burro
é modo de falar. É um ditado da minha terra.
— Daqui
também.
— Não
vende mesmo a carroça?
— Vendo
não.
— Então
aluga?
—
Alugar alugo. É o meu ofício.
O
homem animou-se e segurou uma banda da rédea, dando a impressão de
querer tomar conta da carroça imediatamente.
—
Convém se afastar. O burro é espantado
— avisou Geminiano.
— É
espantado? Então não serve. Alugo só a carroça.
— E
quem é que vai puxar a carroça?
— Temos
animais aí. Bons animais.
— Ah,
mas eu não trabalho com outro animal. De mais a mais, tenho aí o
Serrote, não preciso de outro.
— O
senhor não entendeu. Eu só quero a carroça. Não preciso de burro
nem de carroceiro.
— Quem
não entendeu foi o senhor. Quando eu alugo a carroça, alugo só o
serviço. Quem manobra ela sou eu mesmo. Com o meu burro.
— É,
mas eu só quero a carroça. O senhor desce e leva o burro puxado. O
esterco o senhor despeja aí num canto — disse o homem, já levando
a mão ao arreiame para desatrelar.
— Ora,
vá caçar coberta — disse Geminiano, e chicoteou o burro com
raiva, deixando o homem apatetado na beira da estrada.
A
história espalhou-se depressa, e Geminiano recebeu elogios gerais
por ter sabido pôr o homem em seu lugar. Então aquilo era maneira
de tratar negócio, falando de cima, e metendo a mão, e dando ordem,
como se eles fossem donos de tudo? Mas quando a notícia chegou na
venda de Amâncio Mendes, houve discordância. Falando gritado, como
era seu costume, Amâncio roncou para ser ouvido até na rua:
— Esse
tição é muito é besta. Só porque arranjou uma carroça, pensa
que virou gente. Haverá de ser comigo.
Por
acaso seu Justino Moreira estava na venda, e como comprador do
esterco achou que devia defender Geminiano.
— Mas,
se ele tinha serviço começado, não podia parar no meio.
Amâncio
caiu em si. Não tencionava desfeitear Justino, homem tão correto,
amigo. O mal de se falar por falar, quando não há necessidade de
abrir a boca. Que tinha ele de abrir fogo contra Geminiano, e logo a
favor daqueles homens? Agora era tarde, o dito estava dito, ficava
feio recuar na vista de tanta gente.
— É,
mas ele errou. Não tinha nada de maltratar o homem. Fosse comigo,
ele descia da carroça. Não aceito proeza de preto.
Tendo
dado a sua opinião, e na frente de todos, Justino achou que a sua
obrigação estava cumprida. Insistir seria puxar briga sem
necessidade. Amâncio podia brigar como quem espirra, não tinha
responsabilidade de família, brigava para sustentar a fama de
valente, às vezes até sem vontade nenhuma; tanto que, ultimamente,
quando achava que estava chegando tempo de avivar a fama, se retirava
para o quartinho do fundo da venda, bebia umas boas lambadas de pinga
e saía escorvado, pronto para estourar com o primeiro que falasse
com ele; não respeitava ninguém, qualquer pessoa servia, o objetivo
era travar uma briga bem barulhenta, para ser ouvida e comentada.
Geminiano
era um preto risonho, manso por fora mas espinhento por dentro.
Quando alguém lhe dizia alguma coisa que não caía bem, ele parava
o riso no meio e virava o avesso do pano. As crianças gostavam dele
por causa dos passeios de carroça que ele concedia e das
rapadurinhas de açúcar que distribuía, alvinhas, lisinhas como
tábuas cepilhadas, tão perfeitas que dava pena quebrá-las para
comer; mas os pais dos meninos o respeitavam por sua mania de querer
tudo muito claro e explicado. Para ele negócio combinado era como
promessa devida a santo, tinha de ser cumprido custasse o que
custasse, não valiam queixas de través, palavras jogadas no ar para
tirar o corpo de uma combinação que não estivesse interessando
mais. A própria mulher de Geminiano às vezes se queixava, dizia que
ele estava se prejudicando por querer levar tudo a canto de esquadro,
quando outros não faziam assim. Ele explicava:
— Eu
sou preto, tenho de ter o meu muro muito branco. Não posso relaxar.
Se eu deixar cada um ir rabiscando o que quiser, onde é que vamos
parar?
Como
era de se esperar, a bravata de Amâncio Mendes acabou alcançando os
ouvidos de Geminiano. Quando soube, Geminiano passou o resto do dia e
quase toda a noite pensando no que devia fazer para manter o muro
limpo. Ele e Amâncio vinham se dando bem mas sem muito agarramento.
Não havia muita intimidade entre eles, da parte de Amâncio por
certa restrição a pretos, da de Geminiano por desaprovação às
maneiras estouvadas de Amâncio. Compreendendo que qualquer atrito
teria consequências sérias, eles se poupavam, se limitavam ao
estritamente necessário à vida num lugar pequeno. Agora Amâncio
saía-se com aquela provocação estabanada, e pelas costas de
Geminiano. Um problema para Geminiano.
Por
que a provocação sem motivo? Será que Amâncio estava de
combinação com os homens? Se estava trabalhando por encomenda,
devia estar preparado para o troco. Pois não haveria troco enquanto
Amâncio não o provocasse de frente. Geminiano tinha uma garrucha em
casa, ia passá-la da gaveta para a cintura e, no mais, continuar
inocente. Ia fazer de conta que não tinha ouvido nada e até
continuar comprando na venda de Amâncio, por mais que custasse falar
naturalmente com ele. Se tivessem de brigar, seria uma briga limpa —
mas quem tinha de começar era Amâncio.
José
J. Veiga, in A hora dos ruminantes
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