quinta-feira, 16 de março de 2017

O preto Geminiano


Mas acampados tão perto, e fazendo grandes obras nos terrenos da velha chácara de Júlio Barbosa, era natural que os homens de vez em quando esbarrassem com alguém da cidade. Isso aconteceu com Geminiano Dias, proprietário de uma carroça de aluguel. Geminiano estava carreando estrume para horta, numa das viagens foi interpelado na cerca do pasto por um homem alto, queixudo, de cabelo cortado à escovinha:
Negociar a carroça, caboclo?
Geminiano não gostou dos modos, e para mostrar que não tinha gostado continuou viagem, sem parar nem olhar. O homem avançou para o lanço seguinte da cerca, insistiu:
Negociar a carroça? Pago bem.
Nhor não — respondeu Geminiano por muito favor.
O homem não desistia. Avançou mais um lanço, falou mandando:
Pare um pouco. Pode parar não?
Posso não. Se pudesse, eu ficava parado em casa.
O homem mergulhou rápido por baixo da cerca, deu uma carreirinha e cortou a frente da carroça.
Um momento, rapaz — disse. — Quando um burro fala, o outro para para escutar.
Não entendo conversa de burro — disse Geminiano. — Com burro eu falo é com isto aqui. — E mostrou o chicote erguido.
Nessa altura o burro já tinha parado espontaneamente. O homem alisou o focinho dele, pensando. Resolveu não pegar o peão. Quem está em posição mais alta, e armado de chicote, leva vantagem. Negociou:
Burro é modo de falar. É um ditado da minha terra.
Daqui também.
Não vende mesmo a carroça?
Vendo não.
Então aluga?
Alugar alugo. É o meu ofício.
O homem animou-se e segurou uma banda da rédea, dando a impressão de querer tomar conta da carroça imediatamente.
Convém se afastar. O burro é espantado — avisou Geminiano.
É espantado? Então não serve. Alugo só a carroça.
E quem é que vai puxar a carroça?
Temos animais aí. Bons animais.
Ah, mas eu não trabalho com outro animal. De mais a mais, tenho aí o Serrote, não preciso de outro.
O senhor não entendeu. Eu só quero a carroça. Não preciso de burro nem de carroceiro.
Quem não entendeu foi o senhor. Quando eu alugo a carroça, alugo só o serviço. Quem manobra ela sou eu mesmo. Com o meu burro.
É, mas eu só quero a carroça. O senhor desce e leva o burro puxado. O esterco o senhor despeja aí num canto — disse o homem, já levando a mão ao arreiame para desatrelar.
Ora, vá caçar coberta — disse Geminiano, e chicoteou o burro com raiva, deixando o homem apatetado na beira da estrada.
A história espalhou-se depressa, e Geminiano recebeu elogios gerais por ter sabido pôr o homem em seu lugar. Então aquilo era maneira de tratar negócio, falando de cima, e metendo a mão, e dando ordem, como se eles fossem donos de tudo? Mas quando a notícia chegou na venda de Amâncio Mendes, houve discordância. Falando gritado, como era seu costume, Amâncio roncou para ser ouvido até na rua:
Esse tição é muito é besta. Só porque arranjou uma carroça, pensa que virou gente. Haverá de ser comigo.
Por acaso seu Justino Moreira estava na venda, e como comprador do esterco achou que devia defender Geminiano.
Mas, se ele tinha serviço começado, não podia parar no meio.
Amâncio caiu em si. Não tencionava desfeitear Justino, homem tão correto, amigo. O mal de se falar por falar, quando não há necessidade de abrir a boca. Que tinha ele de abrir fogo contra Geminiano, e logo a favor daqueles homens? Agora era tarde, o dito estava dito, ficava feio recuar na vista de tanta gente.
É, mas ele errou. Não tinha nada de maltratar o homem. Fosse comigo, ele descia da carroça. Não aceito proeza de preto.
Tendo dado a sua opinião, e na frente de todos, Justino achou que a sua obrigação estava cumprida. Insistir seria puxar briga sem necessidade. Amâncio podia brigar como quem espirra, não tinha responsabilidade de família, brigava para sustentar a fama de valente, às vezes até sem vontade nenhuma; tanto que, ultimamente, quando achava que estava chegando tempo de avivar a fama, se retirava para o quartinho do fundo da venda, bebia umas boas lambadas de pinga e saía escorvado, pronto para estourar com o primeiro que falasse com ele; não respeitava ninguém, qualquer pessoa servia, o objetivo era travar uma briga bem barulhenta, para ser ouvida e comentada.
Geminiano era um preto risonho, manso por fora mas espinhento por dentro. Quando alguém lhe dizia alguma coisa que não caía bem, ele parava o riso no meio e virava o avesso do pano. As crianças gostavam dele por causa dos passeios de carroça que ele concedia e das rapadurinhas de açúcar que distribuía, alvinhas, lisinhas como tábuas cepilhadas, tão perfeitas que dava pena quebrá-las para comer; mas os pais dos meninos o respeitavam por sua mania de querer tudo muito claro e explicado. Para ele negócio combinado era como promessa devida a santo, tinha de ser cumprido custasse o que custasse, não valiam queixas de través, palavras jogadas no ar para tirar o corpo de uma combinação que não estivesse interessando mais. A própria mulher de Geminiano às vezes se queixava, dizia que ele estava se prejudicando por querer levar tudo a canto de esquadro, quando outros não faziam assim. Ele explicava:
Eu sou preto, tenho de ter o meu muro muito branco. Não posso relaxar. Se eu deixar cada um ir rabiscando o que quiser, onde é que vamos parar?
Como era de se esperar, a bravata de Amâncio Mendes acabou alcançando os ouvidos de Geminiano. Quando soube, Geminiano passou o resto do dia e quase toda a noite pensando no que devia fazer para manter o muro limpo. Ele e Amâncio vinham se dando bem mas sem muito agarramento. Não havia muita intimidade entre eles, da parte de Amâncio por certa restrição a pretos, da de Geminiano por desaprovação às maneiras estouvadas de Amâncio. Compreendendo que qualquer atrito teria consequências sérias, eles se poupavam, se limitavam ao estritamente necessário à vida num lugar pequeno. Agora Amâncio saía-se com aquela provocação estabanada, e pelas costas de Geminiano. Um problema para Geminiano.
Por que a provocação sem motivo? Será que Amâncio estava de combinação com os homens? Se estava trabalhando por encomenda, devia estar preparado para o troco. Pois não haveria troco enquanto Amâncio não o provocasse de frente. Geminiano tinha uma garrucha em casa, ia passá-la da gaveta para a cintura e, no mais, continuar inocente. Ia fazer de conta que não tinha ouvido nada e até continuar comprando na venda de Amâncio, por mais que custasse falar naturalmente com ele. Se tivessem de brigar, seria uma briga limpa — mas quem tinha de começar era Amâncio.
José J. Veiga, in A hora dos ruminantes

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