domingo, 12 de março de 2017

O enganado

Alguma coisa ia lhe acontecer. Trinta e sete anos, saúde perfeita, ganhando dinheiro como nunca — alguma coisa estava errada. O mundo todo em crise e ele ali, sem um problema. Ou com um problema só: a ausência de problemas.
Alguma estavam lhe preparando. Ia ter um enfarte fulminante. Perder o emprego. Perder uma perna. Estava tudo bem demais. Ele era o único homem da sua idade com os quatro avós ainda vivos! Aquilo não era natural. Alguma estavam lhe preparando. E não demoraria.
Alguém sentou ao seu lado no bar e disse:
Você não me conhece.
Era um homem bonito, mais moço do que ele. O homem estendeu a mão e se apresentou.
Eu sou o Carlos.
Muito prazer...
Sua mulher deve ter lhe falado a meu respeito.
Não, não falou.
O homem fez uma cara de desapontamento. Disse:
Ela me prometeu que lhe contaria tudo. Assim fica mais difícil...
Ele sentiu, com alívio, que sua tragédia chegava. Então era isso. Sua mulher o enganava. Era melhor do que um enfarte.
Quem sabe você mesmo me conta tudo, Carlos?
Bom, não há muito para contar. Nos conhecemos...
Onde?
Estava tomado por uma espécie de volúpia de sofrimento. Queria saber tudo. Queria ser arrasado
pelos detalhes.
Num shopping.
Ele gemeu baixinho. Perfeito. Nas suas intermináveis tardes fazendo compras enquanto ele trabalhava, ela também namorava. Carlos continuou:
Aconteceu. Não pudemos evitar. Ela me ajudou a escolher uma gravata, começamos a conversar e... Aconteceu.
Há quanto tempo vem acontecendo?
Três meses.
Motéis?
Às vezes. E no meu apartamento, quando mamãe não está.
Ele tentou visualizar sua mulher num motel com aquele homem. A mãe dos seus filhos numa cama redonda e refletida no espelho do teto, com outro. O banho de óleos. Teria banho de óleos? As tardes de loucura e prazer. Era demais. Ele não aguentava! Pediu mais detalhes.
A iniciativa foi dela?
Não, minha. Ela resistiu bastante.
Não tente me consolar — suplicou ele.
Decidimos que você precisava saber. Ela lhe respeita demais. Aceita o divórcio, a separação dos filhos...
Sim, sim. Os filhos. Teria que ser pai e mãe para eles. Apoiá-los para que vencessem o trauma da separação. Sua vida seria um inferno dali para diante. Não se suicidaria para poupar as crianças e sempre protegeria o nome da mulher na frente deles. Mas por dentro estaria destruído.
A Cláudia ia lhe falar sobre nós ontem, mas acho que não teve coragem. Ela me contou que você vinha sempre a este bar por esta hora e...
Que Cláudia?
Como, que Cláudia? A sua mulher.
A mulher dele se chamava Sônia.
Que foi? — perguntou Carlos.
Nada, nada.
Escute, Raul. Você deve reagir. Não é o fim do mundo. Eu sinto muito, mas divórcios acontecem a toda hora. Vá para casa, converse com a Cláudia...
Olhe aqui. Eu não preciso dos seus conselhos, entendeu? Você já fez a sua parte, destruindo o meu lar, destruindo a minha vida. Agora é comigo. Dê o fora antes que eu...
Carlos deu o fora. Ele chamou o barman e pediu outro uísque. Duplo. Era a primeira vez que repetia o uísque desde que começara a frequentar o bar. O barman estranhou:
Problema, seu Mário?
Ele não se conteve. Quase soluçando, com os olhos cheios de lágrimas, respondeu:
Acabei de saber uma coisa terrível. Finalmente!
Luís Fernando Veríssimo, in Diálogos impossíveis

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