Quando
alguém disse que no cartório tinha chegado notícia, a venda se
limpou de arranco, todos saindo disparados beco acima, os mais velhos
bufando atrás, resmungando contra a pressa dos outros, como se
notícia fosse artigo de se esgotar com a procura.
O
que se dizia no cartório não chegava a ser notícia. Um menino
passou na garupa de um cargueiro, viu homens jogando peteca atrás da
cerca. Parou um pouco para olhar, homens jogando peteca não se vê
todo dia. Um dos homens estava vestido de branco até no chapéu,
esquisito jogar peteca de chapéu na cabeça, a aba deve atrapalhar a
vista. Os homens discutiam mais do que jogavam, uma hora lá um deles
se aborreceu e foi embora pisando duro. O jogo continuou com os que
ficaram, a discussão também. O que mais reclamava era o homem de
branco, esse pelo jeito devia ser o dono da peteca.
O
povo avaliou a informação, a maioria achou que não tinha pé nem
cabeça.
—
Amâncio jogando peteca? Não entrosa.
— Esse
menino não estará inventando?
— Para
onde foi o menino? Precisamos conversar com ele.
Ninguém
sabia quem era o menino. Passara na garupa de um cargueiro,
atravessara o largo, sumira.
— Mora
aonde? É filho de quem?
Um
menino que conduz um cargueiro pode morar em qualquer parte, sempre
longe, pode não ter pais, é apenas um menino conduzindo um
cargueiro, passa vendendo sua lenha, melancia, mandioca, desaparece.
Agora está aqui, em seguida não está mais. Quem vai achá-lo num
mundo cheio de meninos?
Amâncio
jogando peteca com gente desconhecida… Tudo confuso, trançado,
sobrando pontas. Se ele estava nesse papel, devia ser por outras
pontarias. E que homens eram aqueles outros que passavam o tempo num
brinquedo tão miúdo, quando tinham tanto trabalho a fazer em volta,
conforme dizia Geminiano? A notícia não encaixava, ficava solta,
pedindo explicação.
Quando
a carroça de Geminiano apontou na estrada, o povo novamente correu
para ela sem pensar na distância. Das casas saía mais gente, muitos
correndo porque viam outros correrem, não sabiam para onde iam nem
por que corriam. Mulheres assustadas chegavam às janelas se
persignando, tanto homem correndo na rua só podia ser desastre,
malefício; se viam algum conhecido mais íntimo gritavam pedindo
explicação, mas as respostas não vinham ou vinham em gestos
sumários, ninguém parava, ninguém queria se atrasar.
Alcançada
a estrada larga da ponte, o bando se espalhou e reduziu a marcha, não
havia necessidade de correr tanto, Geminiano já vinha perto e o
caminho era só aquele, e também todo mundo já sentia uma dorzinha
incômoda abaixo das costelas.
Geminiano
não gostou de ver aquela multidão no caminho, tanta gente reunida
só podia atrapalhar a passagem, assustar o Serrote, atrasar a
viagem, ainda faltavam duas. Para não perder o embalo, ele atiçou o
Serrote e fez de conta que não havia ninguém na frente. A multidão
foi se abrindo para dar passagem, e mal a carroça entrou na clareira
Geminiano viu que tinha caído numa cilada.
— Abre!
Abre! Afasta! Olha o burro! — gritava ele sacudindo as rédeas e
mal saindo do lugar.
Não
podendo avançar, o Serrote levantava a cabeça, estufava o peito,
sapateava parado, dando uma satisfação aos mandos do dono
transmitidos pelas rédeas.
Gente
gritava, puxava, empurrava, Geminiano não entendia tanto grito,
gritava também:
— Abre!
Abre! Olhe as rodas! Cuidado com os pés! Olhe o burro! Não empatem!
Não
adiantava forçar, o povo não abria caminho, o Serrote já estava
contido pelo freio, pelo pescoço, pelas orelhas, tinha gente até
fazendo força para travar as rodas com as mãos. Geminiano suspirou,
desistindo.
— E
Amâncio?
— Ele
entrou?
— E
os homens?
— E
a peteca?
— Teve
briga?
A
custo Geminiano conseguiu dizer que não vira Amâncio, que não
sabia de peteca nem de briga, que estava tudo calmo na tapera, todo
mundo trabalhando.
— Que
trabalhando! Estavam jogando peteca com Amâncio.
— Não
me consta.
— Um
menino viu.
— Viu?
Então estavam.
— Já
acabaram?
Geminiano
irritou-se, estourou:
—
Querem saber de uma coisa? Eu tenho minha
obrigação a fazer. Com licença. Vamos, Serrote! — E chicoteou o
burro, forçando caminho entre o povo desapontado.
Alguns
não puderam se arredar em tempo e tiveram os pés machucados pelas
rodas da carroça, outros sofreram esfoladuras nas costelas, um levou
uma cabeçada do Serrote no peito e saiu tossindo para um lado,
prometendo vingança, tiro na testa, porretada no lombo, enquanto a
carroça se afastava chacoalhando as juntas, Geminiano em cima
apressando o burro para reaver o tempo perdido.
José
J. Veiga, in A hora dos ruminantes
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