sexta-feira, 3 de março de 2017

Jogo de peteca


Quando alguém disse que no cartório tinha chegado notícia, a venda se limpou de arranco, todos saindo disparados beco acima, os mais velhos bufando atrás, resmungando contra a pressa dos outros, como se notícia fosse artigo de se esgotar com a procura.
O que se dizia no cartório não chegava a ser notícia. Um menino passou na garupa de um cargueiro, viu homens jogando peteca atrás da cerca. Parou um pouco para olhar, homens jogando peteca não se vê todo dia. Um dos homens estava vestido de branco até no chapéu, esquisito jogar peteca de chapéu na cabeça, a aba deve atrapalhar a vista. Os homens discutiam mais do que jogavam, uma hora lá um deles se aborreceu e foi embora pisando duro. O jogo continuou com os que ficaram, a discussão também. O que mais reclamava era o homem de branco, esse pelo jeito devia ser o dono da peteca.
O povo avaliou a informação, a maioria achou que não tinha pé nem cabeça.
Amâncio jogando peteca? Não entrosa.
Esse menino não estará inventando?
Para onde foi o menino? Precisamos conversar com ele.
Ninguém sabia quem era o menino. Passara na garupa de um cargueiro, atravessara o largo, sumira.
Mora aonde? É filho de quem?
Um menino que conduz um cargueiro pode morar em qualquer parte, sempre longe, pode não ter pais, é apenas um menino conduzindo um cargueiro, passa vendendo sua lenha, melancia, mandioca, desaparece. Agora está aqui, em seguida não está mais. Quem vai achá-lo num mundo cheio de meninos?
Amâncio jogando peteca com gente desconhecida… Tudo confuso, trançado, sobrando pontas. Se ele estava nesse papel, devia ser por outras pontarias. E que homens eram aqueles outros que passavam o tempo num brinquedo tão miúdo, quando tinham tanto trabalho a fazer em volta, conforme dizia Geminiano? A notícia não encaixava, ficava solta, pedindo explicação.
Quando a carroça de Geminiano apontou na estrada, o povo novamente correu para ela sem pensar na distância. Das casas saía mais gente, muitos correndo porque viam outros correrem, não sabiam para onde iam nem por que corriam. Mulheres assustadas chegavam às janelas se persignando, tanto homem correndo na rua só podia ser desastre, malefício; se viam algum conhecido mais íntimo gritavam pedindo explicação, mas as respostas não vinham ou vinham em gestos sumários, ninguém parava, ninguém queria se atrasar.
Alcançada a estrada larga da ponte, o bando se espalhou e reduziu a marcha, não havia necessidade de correr tanto, Geminiano já vinha perto e o caminho era só aquele, e também todo mundo já sentia uma dorzinha incômoda abaixo das costelas.
Geminiano não gostou de ver aquela multidão no caminho, tanta gente reunida só podia atrapalhar a passagem, assustar o Serrote, atrasar a viagem, ainda faltavam duas. Para não perder o embalo, ele atiçou o Serrote e fez de conta que não havia ninguém na frente. A multidão foi se abrindo para dar passagem, e mal a carroça entrou na clareira Geminiano viu que tinha caído numa cilada.
Abre! Abre! Afasta! Olha o burro! — gritava ele sacudindo as rédeas e mal saindo do lugar.
Não podendo avançar, o Serrote levantava a cabeça, estufava o peito, sapateava parado, dando uma satisfação aos mandos do dono transmitidos pelas rédeas.
Gente gritava, puxava, empurrava, Geminiano não entendia tanto grito, gritava também:
Abre! Abre! Olhe as rodas! Cuidado com os pés! Olhe o burro! Não empatem!
Não adiantava forçar, o povo não abria caminho, o Serrote já estava contido pelo freio, pelo pescoço, pelas orelhas, tinha gente até fazendo força para travar as rodas com as mãos. Geminiano suspirou, desistindo.
E Amâncio?
Ele entrou?
E os homens?
E a peteca?
Teve briga?
A custo Geminiano conseguiu dizer que não vira Amâncio, que não sabia de peteca nem de briga, que estava tudo calmo na tapera, todo mundo trabalhando.
Que trabalhando! Estavam jogando peteca com Amâncio.
Não me consta.
Um menino viu.
Viu? Então estavam.
Já acabaram?
Geminiano irritou-se, estourou:
Querem saber de uma coisa? Eu tenho minha obrigação a fazer. Com licença. Vamos, Serrote! — E chicoteou o burro, forçando caminho entre o povo desapontado.
Alguns não puderam se arredar em tempo e tiveram os pés machucados pelas rodas da carroça, outros sofreram esfoladuras nas costelas, um levou uma cabeçada do Serrote no peito e saiu tossindo para um lado, prometendo vingança, tiro na testa, porretada no lombo, enquanto a carroça se afastava chacoalhando as juntas, Geminiano em cima apressando o burro para reaver o tempo perdido.
José J. Veiga, in A hora dos ruminantes

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