O médico Sidónio Rosa encolhe-se para
vencer a porta, com respeitos de quem estivesse penetrando num
ventre. Está visitando a família de Bartolomeu Sozinho, o mecânico
reformado de Vila Cacimba. À porta, a esposa, Dona Munda, não
desperdiça palavra, nem despende sorriso. É o visitante quem
arredonda o momento, inquirindo:
— Então, o nosso Bartolomeu está
bom?
— Está bom para seguir deitado, de
vela e missal…
A voz rouca parece distante, contrariada
como se lhe custasse o assunto. O médico acredita não ter
entendido. Ele é português, recém-chegado a África. Refaz a
questão:
— Perguntava eu, Dona Munda, sobre o
seu marido…
— Está muito mal. O sal já está
todo espalhado no sangue.
— Não é sal, são diabetes.
— Ele recusa. Diz que se ele é
diabético, eu sou diabólica.
— Continuam brigando?
— Felizmente, sim. Já não temos
outra coisa para fazer. Sabe o que penso, Doutor? A zanga é a nossa
jura de amor.
A dona da casa pára no meio do corredor,
ajeita um cacho de cabelos sob o lenço como se aquele tufo capilar
fosse o último vestígio da sua sensualidade.
— Diga-me, Doutor, não será que
Bartolomeu foi atacado por essa doença que agora corre pela Vila?
— Não, esta é outra doença.
— Ainda há pouco passou pela rua um
desses homens enlouquecidos, agitando os braços, parecia querer
voar.
— O posto de saúde está cheio
deles, quase todos soldados.
— Sabe como o povo os chama? São
chamados de tresandarilhos.
— Sim, já sabia. É um belo nome:
tresandarilhos…
— Acha que é uma maldição?
— Isso não existe, Dona Munda. As
doenças possuem causas objetivas.
Munda bate à porta do quarto, a
fortaleza onde o velho se encerrou e escurece desde há meses. A
esposa aguarda pela rabugenta resposta de Bartolomeu. Em vão. Dona
Munda não poupa os nós dos dedos e, de novo, golpeia a porta.
Cauteloso, o Doutor Sidónio pede-lhe contenção.
— Se calhar ele está a dormir.
Venho mais tarde…
— Esse fulano vai acordar.
Às vezes chama-lhe fulano, outras, reduz
o nome do marido para Barto. Agora, rosto espalmado na madeira, a mão
de Munda sacode o trinco. Por fim, o homem se faz escutar:
— Porquê?
Desde que ali chegou, Sidónio Rosa vem
estranhando muita coisa. Por exemplo, agora: a pergunta devia ser
“quem é?” . Mas Dona Munda já vai anunciando: ela vinha com o
Doutor. O homem resmunga: o médico que entrasse sozinho, que a
esposa só lhe atrapalhava a pulsação, raios a partissem, com todo
o respeito.
Dão tempo. Dona Munda vai traduzindo
para o médico português os pastosos sons que vão escoando através
da porta. Escuta-se o velho Bartolomeu a erguer-se do cadeirão,
lento como lava fria, escutam-se os seus gemidos enquanto se dobra
para calçar peúgas. Agora, diz Munda, agora ainda será preciso
esperar que ele repuxe as meias até cobrir os joelhos.
— O seu marido tem tanto cuidado com
as peúgas…
— Não é cuidado. É vergonha.
— Vergonha?
— Diz que tem os pés cheios de
escamas. As unhas já lhe crescem fora dos dedos…
— Ora, Dona Munda…
— É ele que diz, não sou eu. O
velho diz que o avô dele morreu lagarto, é isso que ele diz…
Era o que dizia o seu Bartolomeu: que era
maleita de família, também ele estava a caminho de se lagartear. A
única coisa, porém, que vai rastejando, rente às poeiras, é a sua
pobre alma. A esposa resmunga e, depois, suspira:
— Esse teimoso nunca devia era ter
saído do hospital, estava tão bem, lá na cidade.
Não saiu, fugiu. Tinham-lhe ligado a
veia a um soro, dada a sua debilidade. Os alimentos desciam-lhe
contra a corrente sanguínea. Para Bartolomeu era o inverso: ele é
que estava alimentando o hospital, com os fluidos que lhe extraíam.
Esse sangue roubado circulava agora pelo edíficio, escorria pelos
fundos e se espelhava no vermelhão dos poentes. “O hospital é um
lugar doente”, reclamava o velho. Ao escapar-se daquele antro ele
regressava para os seus antigos recantos. “Eu e a casa sofremos de
uma mesma doença: saudades”, disse.
— Foi a melhor coisa que me
aconteceu a mim — lamenta a esposa. — A melhor coisa foi
esse tempo que o teimoso passou no hospital…
Dona Munda não termina o suspiro: a
porta, por fim, se abre no exacto momento em que o português lhe
pergunta:
— E fizeram-lhe exames?
A resposta é interrompida pela aparição
de Bartolomeu. O ex-mecânico é uma sombra esvoaçando no escuro. As
mãos dele confirmam a fivela do cinto com receio de que as calças
arreiem.
— Ah, Doutor, é mesmo o senhor… É
que essa aí, às vezes, me engana, ela se disfarça só para eu lhe
abrir a porta.
O gesto firme é uma ordem para que a
esposa fique fora. Com passo hesitante, Sidónio vai entrando como se
os cheiros bafientos ocupassem todo o obscuro quarto. Bartolomeu vai
à frente arrastando os pés. Atrás segue a esposa, debicando
distâncias. Os passos dele são pequenos: de um chão de prisão. Os
passos dela são redondos: de quem anda em ilha.
— Então, meu amigo, está melhor?
— Eu só melhoro quando deixo de ser
eu.
— Gosto de o ver assim, sempre
filósofo.
— Desculpe, Doutor Sidonho —
afirma o velho. — Eu gosto de o ver, mas não gosto que me
visite.
Sidonho é como o nome do português foi
apropriado pela Vila. O médico até gostou desse rebaptismo que o
torna mais à disposição de ser outro. Com a mesma condescendência,
ele sorri agora para o velho enfermo:
— Ora, estamos pessimistas, hoje?
— Então, me diga: qual é a cura da
minha doença, Doutor?
A cura para a doença dele era contrair
mais doença ainda, apeteceu-lhe dizer. Mas Sidónio conteve-se e
ajeitou a fala:
— Viver é que não tem cura, caro
amigo.
O velho Bartolomeu vai trocando os pés
para esconder um buraco na peúga. Até no morrer ele era minucioso.
Um esgar a proteger-lhe os olhos do fumo do cigarro, o reformado
mecânico inspira e geme por turnos.
— Vê estas olheiras? Já são
maiores que a cara inteira. É fígado, o fígado já me chega aos
olhos.
O fígado, para ele, não é um órgão.
É um fluido que circula pelas entranhas. À porta da morte, a pessoa
não passa de um saco de bílis.
— E depois nunca mais saio deste
maldito barco.
— Refere-se aos enjoos?
— Aos enjoos, a esta porcaria deste
balanço, parece que ainda estou na merda do navio.
O navio era o paquete Infante D.
Henrique. Durante uma dezena de anos, Bartolomeu Sozinho servira
como mecânico na casa das máquinas do transatlântico, atravessando
mares no fundo de um porão tão escuro como o seu atual quarto.
Tinha sido o único negro a fazer parte da tripulação e disso muito
se orgulhava. Depois tudo terminou, o regime colonial se afundou, o
navio encalhou, virou sucata e estava, um pouco como ele mesmo, à
espera de ser abatido.
— Eu vejo-o, assim de farda branca,
e o Doutor me lembra o comandante do navio…
— Ora, esta é uma simples bata de
médico.
— A sério, até parece que ainda
viajo lá no paquete, parece que escuto as águas ondeando…
Saudades ondeiam, sim, no seu olhar
quando enfrenta, na moldura pendurada na parede, a sua desbotada
fotografia, perfilado entre cadetes e marinheiros do Infante D.
Henrique. Suspenso do retrato, um emblema, verde e branco, da
Companhia Colonial de Navegação.
— Doutor Sidonho?
— Diga, meu amigo.
— Trouxe o remédio?
— Que remédio?
O velho sorri, triste. Descem-lhe as
pálpebras enquanto sacode a cabeça. Um suspiro apaga a fronteira
entre resignação e paciência.
— Ora, Doutor, o remédio de pernas,
de mamas, de rabo…
— Ainda insiste nessa ideia,
Bartolomeu?
— Essa ideia é que insiste em mim,
Doutor, essa ideia é a única coisa que me faz viver.
E relembra de um jacto, como se temesse
que o tempo lhe faltasse. Passara-se assim: ele deixara de sair.
Primeiro, de casa. Depois, do quarto. Condenara-se a ele mesmo à
prisão do quarto. A rua se foi convertendo numa nação estranha,
longínqua, inatingível. Não tardaria que a fala humana lhe
surgisse estranha, ininteligível.
— Eu não sinto, Doutor. Só sento.
E foi sucedendo que, de tanto sentar
esperando, as suas partes baixas foram, como ele mesmo diz, descendo,
foram descendo, descendo. Das virilhas baixaram para os joelhos, dos
joelhos para os tornozelos.
— É por isso que não largo as
peúgas, as minhas intimidades andam a rasar o chão.
— Ora, Bartolomeu, afinal tem medo
de quê?
— Tenho medo de pisar os tomates…
Mia
Couto, in
Venenos de Deus, remédios do Diabo
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