sexta-feira, 10 de março de 2017

As multidões

Nem todos podem tomar um banho na multidão: ter o prazer da turba é uma arte. Só assim se pode oferecer, à custa do gênero humano, um banquete de vitalidade, a quem uma fada insuflou, no berço, o gosto da dissimulação, a máscara, o ódio ao domicílio e a paixão da viagem.
Multidão, soledade: termos iguais e convertíveis pelo poeta imaginoso e fecundo.
Quem não sabe povoar a própria solidão não sabe tão pouco isolar-se na massa inquieta.
O poeta goza do incomparável privilégio de poder, à vontade, ser ele próprio e outrem. Como as almas errantes que procuram um corpo, ele entra, quando quer, na personalidade de cada um. Só para ele, tudo está vazio; e, se certos lugares parecem-lhe interditos, é que a seus olhos não valem a pena de ser visitados.
O passeador solitário e pensativo experimenta uma singular embriaguez nessa comunhão universal. Quem esposa facilmente a multidão conhece prazeres febris, dos quais estarão eternamente privados o egoísta, fechado como um cofre, e o preguiçoso, internado como um molusco. Adota como suas todas as ideias, todas as alegrias e todas as misérias que as circunstâncias lhe apresentam.
O que os homens denominam amor é muito pequeno, restrito e frágil, quando comparado à inefável orgia, à santa prostituição da alma que se entrega toda, poesia e caridade, ao imprevisto que aparece, ao desconhecido que passa.
Convém mostrar, às vezes, aos felizardos do mundo, ao menos para humilhar um instante o seu tolo orgulho, que há venturas superiores à deles, mais vastas e mais refinadas.
Os fundadores de colônias, os pastores de povos, os sacerdotes missionários exilados nos confins do mundo, conhecem sem dúvida alguma coisa dessa embriaguez misteriosa; e, no seio da vasta família que o seu gênio formou, devem rir, às vezes, dos que lhes deploram o destino agitado e a vida tão casta.
Charles Baudelaire, in Pequenos poemas em prosa

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