segunda-feira, 27 de março de 2017

Alegorias

No meu último ano de escola, no Colégio Nacional de Buenos Aires, um professor cujo nome não me importo de ter esquecido leu para nossa turma o seguinte: Tudo que as alegorias pretendem dizer é somente que o incompreensível é incompreensível, e isso já sabemos. Mas os problemas com que lutamos diariamente são uma coisa diferente. Sobre esse assunto, um homem perguntou certa vez: “Por que tanta teimosia? Se apenas seguissem as alegorias, vocês também se tornariam alegorias e dessa forma resolveriam todos os seus problemas cotidianos”.
Outro disse: “Aposto que isso também é uma alegoria”.
O primeiro disse: “Você ganhou”.
O segundo disse: “Mas ai de mim, só alegoricamente!”.
O primeiro disse: “Não, na vida real. Alegoricamente, você perdeu”.
Esse texto curto, que nosso professor jamais tentou explicar, perturbou-nos e provocou muitas discussões no enfumaçado café La Puerto Rico, logo dobrando a esquina da escola. Franz Kafka escreveu-o em Praga, em 1922, dois anos antes de sua morte.
Passados 45 anos, ele nos deixava, adolescentes inquisitivos, com o sentimento inquietante de que qualquer interpretação, qualquer conclusão, qualquer sentimento de ter “compreendido” a ele e suas alegorias estavam errados. O que aquelas poucas linhas sugeriam não era apenas que cada texto pode ser lido como uma alegoria (e aqui a distinção entre “alegoria” e o conceito menos dogmático de “símbolo” fica obscurecida), revelando elementos de fora do próprio texto, mas que cada leitura é em si mesma alegórica, objeto de outras leituras. Sem conhecer o critico Paul de Man, para quem “as narrativas alegóricas contam a história do fracasso de ler”, estávamos de acordo com ele em que nenhuma leitura pode jamais ser final. Com uma diferença importante: o que De Man considerava um fracasso anárquico, nós víamos como uma prova de nossa liberdade enquanto leitores. Se não havia algo como “a última palavra” na leitura, então nenhuma autoridade poderia nos impor uma leitura “correta”. Com o tempo, percebemos que algumas leituras eram melhores que outras - mais informadas, mais lúcidas, mais desafiadoras, mais prazerosas, mais perturbadoras. Mas o recém-descoberto sentimento de liberdade jamais nos abandonou e ainda agora, deleitando-me com um livro que certo resenhista condenou ou deixando de lado outra obra que recebeu muitos elogios, acho que posso recordar vivamente aquele seu momento rebelde.
Sócrates afirmava que somente o que o leitor já conhece pode ganhar vida com uma leitura, e, para ele, o conhecimento não pode ser adquirido através de letras mortas. Os primeiros eruditos medievais buscavam na leitura uma infinidade de vozes que, em última instância, ecoavam uma única voz: o logos de Deus. Para os humanistas da Idade Média tardia, o texto (incluindo a leitura que fez Platão do argumento socrático) e os sucessivos comentários das diversas gerações de leitores implicavam tacitamente que era possível haver não apenas uma, mas um número quase infinito de leituras, todas alimentando-se reciprocamente. Nossa leitura em sala de aula do discurso de Lísias recebeu a contribuição de séculos dos quais Lísias jamais suspeitou – assim como não poderia fazer ideia do entusiasmo de Fedro ou dos comentários astuciosos de Sócrates. O livro na minha estante não me conhece até que eu o abra, e no entanto tenho certeza de que ele se dirige a mim - a mim e a cada leitor - pelo nome; está à espera de nossos comentários e opiniões. Eu estou pressuposto em Platão, assim como cada livro me pressupõe, mesmo aqueles que nunca lerei.
Por volta de 1316, em uma carta famosa ao vigário imperial Can Grande del a Scala, Dante sustentou que um texto tem pelo menos duas leituras, “pois obtemos um sentido da letra dele e outro daquilo que a letra significa; a primeira é chamada de literal, a outra de alegórica ou mística”. Dante prossegue sugerindo que o sentido alegórico compreende três outras leituras. Apresentando como exemplo o Verso bíblico “Quando Israel saiu do Egito e a casa de Jacó se apartou de um povo bárbaro, Judá tornou-se o santuário do Senhor e Israel o seu reino”, Dante explica: “Se olharmos apenas a letra , o que é posto diante de nós é o êxodo dos filhos de Israel no tempo de Moisés; se a alegoria, nossa redenção forjada por Cristo; se o sentido analógico, vemos a conversão da alma do sofrimento e da desgraça do pecado para o estado de graça; se o anagógico, mostra-senos a partida da alma santa da servidão dessa corrupção para a liberdade da glória eterna. E embora esses significados místicos recebam vários nomes, todos podem ser chamados em geral de alegóricos, uma vez que diferem do literal e do histórico”. São todas leituras possíveis. Alguns leitores podem achar uma ou várias delas falsas; talvez desconfiem de uma leitura “histórica”, se não conhecerem o contexto do trecho; podem fazer objeções à leitura “alegórica”, considerando a referência a Cristo anacrônica; talvez julguem as leituras “analógica” (por meio de analogias) e “anagógica” (mediante interpretações bíblicas) fantasiosas ou forçadas demais. Mesmo a leitura “literal” pode ser suspeita. O que significa exatamente “saiu”? Ou “casa”? Ou “reino”? Parece que mesmo para ler no nível mais superficial o leitor precisa de informações sobre a criação do texto, o pano de fundo histórico, o vocabulário especializado e até sobre a mais misteriosa das coisas, o que santo Tomás de Aquino chamava de quem auctor intendit, a intenção do autor. Contudo, desde que leitor e texto compartilhem uma linguagem comum, qualquer leitor pode descobrir algum sentido em qualquer texto: dadaísta. horóscopos, poesia hermética, manuais de computador e até na linguagem bombástica da política.
Em 1782, pouco mais de quatro séculos e meio depois da morte de Dante, o imperador José II promulgou um édito, o Toleranzpatent, que aboliu teoricamente a maioria das barreiras entre judeus e não-judeus no Sacro Império Romano, com a intenção de assimilá-los à população cristã. A nova lei tornou compulsória para os judeus a adoção de nomes e sobrenomes alemães, o uso da língua alemã em todos os documentos oficiais, o alistamento no serviço militar (do qual estavam até então excluídos) e a frequência às escolas seculares alemãs. Um século depois, em 15 de setembro de 1889, na cidade de Praga, o menino de seis anos Franz Kafka foi levado pela cozinheira da família à Deutsche Volks-und Bürgerschule, no Mercado de Carnes, um estabelecimento de língua alemã em larga medida dirigido por judeus em meio a um ambiente nacionalista tcheco, para começar sua instrução de acordo com o desejo do imperador habsburgo, morto havia muito tempo.
Kafka odiou a escola elementar e, mais tarde, a escola secundária. Achava que, apesar de seu sucesso (passou facilmente em todos os anos), tinha apenas conseguido enganar os mais velhos e “esgueirar-se do primeiro para o segundo ano do ginásio, depois para o terceiro e assim por diante”. Mas, acrescentava, “agora que chamei por fim a atenção deles, evidentemente logo serei posto na rua, para a imensa satisfação de todos os homens honrados, livres de um pesadelo”.
Alberto Manguel, in Uma história da leitura

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