terça-feira, 21 de março de 2017

A estrela enterrada (trecho)

Acabei de enterrar uma estrela!
Foi assim que o pastor Zero Madzero se anunciou junto à cama de sua esposa, Mwadia Malunga. Lá fora, espreitavam os primeiros sinais de luz. A mulher, ainda emergindo do sono, sorriu e disse:
Venha, marido, venha que eu lhe apronto um bom banho.
Olhou o homem em contraluz: parecia um fantasma, magro e sujo, carregando mais poeira que o vento do Norte. Um cheiro a queimado se espalhou na ensonada claridade do quarto.
Trouxe os burros?
Ele acenou com a cabeça, como se estivesse bêbado. Quando Mwadia se aprontava para o encaminhar por entre as penumbras, o pastor deu um passo atrás e murmurou:
Não me toque! Não me toque que tenho as mãos em fogo.
Só então a esposa reparou no brilho que emanava das mãos fechadas de Madzero. Lentamente, ele entreabriu os dedos, um por um, como se desfolhasse uma flor. Mwadia Malunga levou o braço ao rosto, incapaz de enfrentar a reverberação. A sua voz esgueirou-se num gemido:
Meu marido, me confesse: você já morreu?
Não, tudo isto vem da estrela, mulher.
Mas qual estrela?
A estrela que enterrei no nosso quintal.
Mwadia espreitou, receosa, pela janela. O amanhecer costumava ser um beijo no vidro de sua casa. Naquela manhã, porém, a luz era mais tensa que intensa. Foi então que ela viu a pá, espetada junto a um amontoado de areia. Enterrada na vertical, cumpria o serviço de cruz em campa rasa.
Saiu para o pátio, o marido seguindo-a em passos sonâmbulos. Em redor do tambor de água, ela juntou umas tantas latas enquanto o homem se ia despindo. Tinha sido sempre assim: o pastor recusava banhar-se sozinho. Um homem fica menos macho se passeia as mãos pelo seu próprio corpo. Era essa a crença de Zero Madzero. A esposa fazia de conta que acreditava.
Desta vez, como sempre acontecia, manchas de sangue iriam sujar a água que restava do banho. Ela nunca lhe perguntou porquê. A um homem não se perguntam certas coisas. Também ela, quando saltava a lua e lhe vinham os sangues, gostava de ser guardada em silêncio. Uma esteira diferente à entrada da porta: era o que bastava para Zero saber que esses eram dias interditos.

Não gaste muita água, pediu Zero.
Mwadia sentiu os riscos abertos no pescoço do marido. Dizia-se que eram antigas cicatrizes de golpes de faca, de certa vez que quase o mataram. O pastor defendia que eram guelras, que metade da sua alma era de peixe e ele, quando dormia, descia às profundezas do rio e se embalava na corrente.
Tem a certeza que não estava viva?
Quem?
A estrela. — Estava morta. Quando tombou do céu, já vinha despedaçada.
O que restou, disse ele, era pouco menos que uns montes de lata incandescente. Uma lata voadora?, se admirou Mwadia. O pastor Madzero descreveu o mutilado corpo celeste: uns ferros brilhantes, mais amolgados que sucata tombada de uma desconstelação.
Você tocou na estrela?
Toquei, fiz mal.
Mas porquê não resistiu, marido? Vê como não posso confiar em si?
Eu queria aproveitar aqueles ferros, fazer um portão para o curral.
Ali estava a explicação. Não podia ser senão um castigo pela pretensão do burriqueiro em se apropriar de uma criatura celestial. As mãos se impregnaram de cintilações, dessas luzes que acendem os astros no fundo da noite.
Me conte, meu marido. Conte tudo que lhe darei um banho de desencardir a alma.
Mia Couto, in O outro pé da sereia

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