—
Acabei de enterrar uma estrela!
Foi
assim que o pastor Zero Madzero se anunciou junto à cama de sua
esposa, Mwadia Malunga. Lá fora, espreitavam os primeiros sinais de
luz. A mulher, ainda emergindo do sono, sorriu e disse:
—
Venha, marido, venha que eu lhe
apronto um bom banho.
Olhou
o homem em contraluz: parecia um fantasma, magro e sujo, carregando
mais poeira que o vento do Norte. Um cheiro a queimado se espalhou na
ensonada claridade do quarto.
—
Trouxe os burros?
Ele
acenou com a cabeça, como se estivesse bêbado. Quando Mwadia se
aprontava para o encaminhar por entre as penumbras, o pastor deu um
passo atrás e murmurou:
— Não
me toque! Não me toque que tenho as mãos em fogo.
Só
então a esposa reparou no brilho que emanava das mãos fechadas de
Madzero. Lentamente, ele entreabriu os dedos, um por um, como se
desfolhasse uma flor. Mwadia Malunga levou o braço ao rosto, incapaz
de enfrentar a reverberação. A sua voz esgueirou-se num gemido:
— Meu
marido, me confesse: você já morreu?
— Não,
tudo isto vem da estrela, mulher.
— Mas
qual estrela?
— A
estrela que enterrei no nosso quintal.
Mwadia
espreitou, receosa, pela janela. O amanhecer costumava ser um beijo
no vidro de sua casa. Naquela manhã, porém, a luz era mais tensa
que intensa. Foi então que ela viu a pá, espetada junto a um
amontoado de areia. Enterrada na vertical, cumpria o serviço de cruz
em campa rasa.
Saiu
para o pátio, o marido seguindo-a em passos sonâmbulos. Em redor do
tambor de água, ela juntou umas tantas latas enquanto o homem se ia
despindo. Tinha sido sempre assim: o pastor recusava banhar-se
sozinho. Um homem fica menos macho se passeia as mãos pelo seu
próprio corpo. Era essa a crença de Zero Madzero. A esposa fazia de
conta que acreditava.
Desta
vez, como sempre acontecia, manchas de sangue iriam sujar a água que
restava do banho. Ela nunca lhe perguntou porquê. A um homem não se
perguntam certas coisas. Também ela, quando saltava a lua e lhe
vinham os sangues, gostava de ser guardada em silêncio. Uma esteira
diferente à entrada da porta: era o que bastava para Zero saber que
esses eram dias interditos.
— Não
gaste muita água, pediu Zero.
Mwadia
sentiu os riscos abertos no pescoço do marido. Dizia-se que eram
antigas cicatrizes de golpes de faca, de certa vez que quase o
mataram. O pastor defendia que eram guelras, que metade da sua alma
era de peixe e ele, quando dormia, descia às profundezas do rio e se
embalava na corrente.
— Tem
a certeza que não estava viva?
— Quem?
— A
estrela. — Estava morta. Quando tombou do céu, já vinha
despedaçada.
O
que restou, disse ele, era pouco menos que uns montes de lata
incandescente. Uma lata voadora?, se admirou Mwadia. O pastor Madzero
descreveu o mutilado corpo celeste: uns ferros brilhantes, mais
amolgados que sucata tombada de uma desconstelação.
— Você
tocou na estrela?
—
Toquei, fiz mal.
— Mas
porquê não resistiu, marido? Vê como não posso confiar em si?
— Eu
queria aproveitar aqueles ferros, fazer um portão para o curral.
Ali
estava a explicação. Não podia ser senão um castigo pela
pretensão do burriqueiro em se apropriar de uma criatura celestial.
As mãos se impregnaram de cintilações, dessas luzes que acendem os
astros no fundo da noite.
— Me
conte, meu marido. Conte tudo que lhe darei um banho de desencardir a
alma.
Mia
Couto, in O
outro pé da sereia
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