segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

Manhã

Mergulhei numa comprida manhã de inverno. O açude apojado, a roça verde, amarela e vermelha, os caminhos estreitos mudados em M riachos, ficaram-me na alma. Depois veio a seca. Árvores pelaram-se, bichos morreram, o sol cresceu, bebeu as águas, e ventos mornos espalharam na terra queimada uma poeira cinzenta. Olhando-me por dentro, percebo com desgosto a segunda paisagem. Devastação, calcinação. Nesta vida lenta sinto-me coagido entre duas situações contraditórias — uma longa noite, um dia imenso e enervante, favorável à modorra. Frio e calor, trevas densas e claridades ofuscantes.
Naquele tempo a escuridão se ia dissipando, vagarosa. Acordei, reuni pedaços de pessoas e de coisas, pedaços de mim mesmo que boiavam no passado confuso, articulei tudo, criei o meu pequeno mundo incongruente. Às vezes as peças se descolocavam — e surgiam estranhas mudanças. Os objetos se tornavam irreconhecíveis, e a humanidade, feita de indivíduos que me atormentavam e indivíduos que não me atormentavam, perdia os característicos.
Bem e mal ainda não existiam, faltava razão para que nos afligissem com pancadas e gritos. Contudo as pancadas e os gritos figuravam na ordem dos acontecimentos, partiam sempre de seres determinados, como a chuva e o sol vinham do céu. E o céu era terrível, e os donos da casa eram fortes. Ora, sucedia que minha mãe abrandava de repente e meu pai, silencioso, explosivo, resolvia contar-me histórias. Admirava-me, aceitava a lei nova, ingênuo, admitia que a natureza se houvesse modificado. Fechava-se o doce parêntese — e isto me desorientava.
Na manhã de inverno as cercas e as plantas quase se dissolviam, a neblina vestia o campo, dos montes de lixo do quintal subia fumaça, pingos espaçados caíam das goteiras, a cruviana mordia a gente. Sapatões de vaqueiros depositavam grossas camadas de barro no tijolo. Roupas molhadas deixavam manchas largas nos bancos do copiar. As paredes úmidas enegreciam. Deitava-me na rede, encolhia-me, enrolava-me nas varandas. Um candeeiro de querosene lambia a névoa com labaredas trêmulas.
Alguns viventes idosos chegavam, sumiam-se, tornavam a manifestar-se depois de longas ausências. De um deles, meu avô paterno, ficaram notícias vagas e um retrato desbotado no álbum que se guardava no baú. Legou-me talvez a vocação absurda para as coisas inúteis. Era um velho tímido, que não gozava, suponho, muito prestígio na família. Possuíra engenhos na mata; enganado por amigos e parentes sagazes, arruinara e dependia dos filhos. Às vezes endireitava o espinhaço, o antigo proprietário ressurgia, mas isto, rabugice da enfermidade, findava logo e o pobre homem resvalava na insignificância e na rede. Bom músico, especializara-se no canto. Em recordação imprecisa, revejo mulheres ajoelhadas em redor de um oratório. Meu avô, em pé, cantava — e havia-se tornado enorme. Como podia uma pessoa gritar de semelhante maneira? A grandeza e a harmonia singular hoje desdobram a figura gemente e mesquinha, de ordinário ocupada, apesar da moléstia, em fabricar miudezas. Tinha habilidade notável e muita paciência. Paciência?
Acho agora que não é paciência. É uma obstinação concentrada, um longo sossego que os fatos exteriores não perturbam. Os sentidos esmorecem, o corpo se imobiliza e curva, toda a vida se fixa em alguns pontos — no olho que brilha e se apaga, na mão que solta o cigarro e continua a tarefa, nos beiços que murmuram palavras imperceptíveis e descontentes. Sentimos desânimo ou irritação, mas isto apenas se revela pela tremura dos dedos, pelas rugas que se cavam. Na aparência estamos tranqüilos. Se nos falarem, nada ouviremos ou ignoraremos o sentido do que nos dizem. E como há freqüentes suspensões no trabalho, com certeza imaginarão que temos preguiça. Desejamos realmente abandoná-lo. Contudo gastamos uma eternidade no arranjo de ninharias, que se combinam, resultam na obra tormentosa e falha. Meu avô nunca aprendera nenhum ofício. Conhecia, porém, diversos, e a carência de mestre não lhe trouxe desvantagem. Suou na composição das urupemas. Se resolvesse desmanchar uma, estudaria facilmente a fibra, o aro, o tecido.
Julgava isto um plágio. Trabalhador caprichoso e honesto, procurou os seus caminhos e executou urupemas fortes, seguras. Provavelmente não gostavam delas: prefeririam vê-las tradicionais e corriqueiras, enfeitadas e frágeis. O autor, insensível à crítica, perseverou nas urupemas rijas e sóbrias, não porque as estimasse, mas porque eram o meio de expressão que lhe parecia mais razoável. Meu avô materno, alto, magro, de cabelos e barba como pasta de algodão, muito se diferençava dessa criatura achacada: não desperdiçava tempo em cantiga nem se fatigava em miuçalhas. De perneiras, gibão e peitoral, as abas do chapéu de couro, repuxado para a nuca, a emoldurar-lhe o rosto vermelho, impunha-se. A voz lenta, nasal, pigarreada pelo excesso de tabaco, rolava com um ronrom descontente que nos arranhava os ouvidos, depois se insinuava, se adocicava, tomava a consistência de goma. Tínhamos a impressão de que a fala ranzinza nos acariciava e repreendia. Os gestos eram vagarosos. Homem de imenso vigor, resistente à seca, ora na prosperidade, ora no desmantelo, reconstruindo corajoso a fortuna, em geral não se expandia. Escutava sereno as conversas, o lenço encarnado no ombro ou nos joelhos, o olho azul perdido na capoeira familiar, percebendo sinais invisíveis ao observador comum. Possuía conhecimentos infusos a respeito de tudo quanto se refere a bichos: indicava com segurança as crias das vacas paridas no mato, adivinhava o peso exato dos bois de era. Para vender o seu gado nunca precisou de balança. Esse avô bárbaro dispensava ao civilizado, artífice e cantor, exageros de atenção, em que havia talvez surpresa, desdém, o receio de magoá-lo, estragá-lo com as mãos duras.
Minha avó, grave, ossuda, tinha protuberâncias na testa e bugalhos severos. Anos depois contou-me desgostos íntimos: o marido, ciumento, afligira-a demais. Só aí me inteirei de que ela havia sofrido e era boa, mas na época do ciúme e da tortura não lhe notei a bondade.
Existia também um casal de bisavós: uma santa morena e encarquilhada, um velhinho autoritário que embirrava com meu pai.
Além dessas pessoas e dos moradores da fazenda, surgiam no pátio ciganos em magotes, vaqueiros encourados, aboiando, algum raro viajante. Dois passageiros conservaram-se nos relatos da família. O primeiro, um cabra macambúzio e suspeito, foi mal recebido. Minha mãe espiou a vizinhança, buscando Amaro ou José Baía, e sentou-se num canto da sala, perto das armas de fogo. O tipo acocorou-se à porta. E assim permaneceram, ele ferindo a pederneira com o fuzil, chupando o cigarro, ela observando-lhe os movimentos, defendida pelos bacamartes, confiante na firmeza da mão e na pontaria. À tarde o cabra macambúzio declarou a meu pai que a dona era reimosa.
O outro visitante apareceu duas ou três vezes, cochichou demorado no copiar e sumiu-se levando algumas dezenas de mil-réis. Esse dinheiro significava o imposto dos proprietários rurais aos numerosos grupos de cangaceiros que percorriam o sertão, pouco exigentes comparados aos posteriores. Mediante algumas cédulas, uma novilha ou marra, obtinham-se dedicações, amizades proveitosas. Quando nos mudamos para a vila, cinco ou seis bandoleiros que transitavam pelos arredores saíram do caminho, embrenharam-se na catinga, para não assustar a mulher e as crianças.
Ausentes os hóspedes e os passageiros, caíamos no ramerrão fastidioso.
Os mesmos trabalhos de pega, ferra, ordenha; ferrolhos rangendo pela madrugada e ao escurecer; vozes ásperas, exigências curtas, ordens incompreensíveis. Por toda a parte despojos de animais: ossos branquejando nas veredas, caveiras de bois espetadas em estacas, couros espichados, malas de couro, surrões de couro, roupas de couro suspensas em tornos, chocalhos com badalos de chifre, montes de látegos, relhos, arreios, cabrestos de cabelo.
Agora o mundo se retirava além do monturo do quintal, mas não nos aventurávamos a penetrar nessa região desconhecida. O pé-de-turco era o meu refúgio. As meninas arrastavam-se no alpendre e na cozinha. O moleque José começava a revelar-se. Minha irmã natural se desenvolvia, recebendo com frequência arranhões nos melindres. A aversão que inspirava traduzia-se em remoques e muxoxos; quando tomava feição agressiva, fazia ricochete e vinha atingir-nos. Se não existisse aquele pecado, estou certo de que minha mãe teria sido mais humana. De fato meu pai mostrava comportar-se bem. Mas havia aquela evidência de faltas antigas, uma evidência forte, de cabeleira negra, beiços vermelhos, olhos provocadores. Minha mãe não dispunha dessas vantagens. E com certeza se amofinava, coitada, revendo-se em nós, percebendo cá fora, soltos dela, pedaços da sua carne propícia aos furúnculos. Maltratava-se maltratando-nos. Julgo que aguentamos cascudos por não termos a beleza de Mocinha.
Graciliano Ramos, in Infância

Nenhum comentário:

Postar um comentário