O
milionário era um self-made man. Tinha se feito a si mesmo, o que
eximia seu pai e sua mãe de qualquer culpa. Possuía a maior
cobertura com piscina da zona sul (do Brasil), carros do tamanho de
iates e iates do tamanho de navios. A cada minuto do dia, ele ganhava
o equivalente ao orçamento de um município dos médios. Entrava em
qualquer banco do país pisando num tapete de subgerentes. Os filhos
nas melhores escolas, a mulher nos melhores vestidos. Tudo o que o
dinheiro podia comprar.
Mas
Ihe faltava, Ihe faltava... falta a... ele não sabia o quê. Nas
suas organizações trabalhava um jovem de família antiga e
tradicional mas que, devido às voltas do destino e da economia de
mercado, perdera todo o seu dinheiro. Dessas famílias que antes
produziam aristocratas rurais e hoje produzem secretários de
embaixadas e relações-públicas. Você conhece a história. O
milionário
mandou chamar Rudi - seu nome era Rudi - e expôs a sua angústia.
"Tenho
tudo o que o dinheiro pode comprar", disse o milionário, "mas
me falta não sei o quê."
Rudi
cruzou as pernas, puxou o friso impecável das calças entre dois
dedos manicurados e sentenciou:
"Já
sei. Lhe falta je ne sais quoi."
lSSO.
O
milionário pulou da cadeira. Rudi acertara na mosca. Ainda de pé, o
milionário gritou outra vez:
"Isso!
É exatamente o que me falta. Jenesequá. Eu quero que você me ajude
a consegui-lo. Pago qualquer preço pelo jenesequá."
"Qualquer
preço", claro, era um exagero. O milionário não chegara onde
estava pagando qualquer preço. Rudi ganhou um pequeno aumento. Foi
transferido do Departamento de Relações Públicas para um cargo de
assessor da Presidência e instalou-se num discreto escritório, ao
alcance do chefe, que ele imediatamente decorou com alguns objetos
pré-colombianos do melhor gosto. O escritório. Não o chefe.
Rudi
passou a aconselhar o milionário na sua conduta social. O que dizer,
como segurar a faca, onde ser visto e com quem e com que gravata. O
objetivo do milionário, estabelecido com a mesma firmeza com que
traçava os planos de produção da sua indústria e os horários de
visita a sua amante, era claro. Em seis meses queria ser citado na
coluna do Zózimo, como o maior jenesequá do Brasil. Mas o trabalho
de Rudi não era fácil. O milionário não aprendia. Rudi, por
exemplo, o aconselhava a comparecer a determinado vernissage.
-
Já sei. Chego lá e compro tudo.
-
Não. Examine bem os quadros, escolha um de tamanho médio, nem muito
caro, que pareça ostentação, nem muito barato, que pareça
avareza, e compre sem estardalhaço. Comente depois que foi atraído
pelo vigor contido no quadro, sua força hesitante, como o
expressionismo embrionário do jovem Van Gogh.
-
Vigor contido, força hesitante, expressionismo do jovem embrião.
-
Do jovem Van Gogh.
-
Deixa comigo.
Mas
o milionário chegava à exposição, entusiasmava-se com o
movimento, com as roupas, os nomes presentes - todos com jenesequá e
comprava tudo sem olhar. No dia seguinte as crônicas sociais
comentavam a incontrolável ânsia de aparecer de certas pessoas que,
misericordiosamente, permaneciam anônimas. Foi depois de um jantar
na cobertura do milionário em que, confuso com as recomendações do
seu consultor sobre que vinhos servir com quais pratos, o anfitrião
botou garrafas de Côte du Rhône tinto, brancos de Graves e rosês
da Provence em cima da mesa e anunciou "Cada um escolhe o seu
veneno e quem quiser guaraná também tem", que Rudi ameaçou
desistir. Não era mais possível. Só concordou em continuar quando
o milionário Ihe prometeu um substancial aumento de salário. E
ficou combinado que dali em diante Rudi acompanharia o milionário em
todas as ocasiões, para evitar vexame.
Passaram
a ir juntos a toda parte. E, em pouco tempo, freqüentando ambientes
e convivendo com pessoas que o seu salário anterior proibia, Rudi
tornou-se uma figura conhecida e admirada nas altas rodas da cidade.
Para os outros, Rudi não era apenas um bem-sucedido homem de
negócios, como provava o seu óbvio status dentro das organizações
do milionário grosso, aquele - como era mesmo o nome dele? - Era um
homem fino, inteligente, civilizado. Bastava ver como ele contornava,
com tato e bom humor, as incríveis gafes do seu patrão. Começou a
ser citado com freqüência nas colunas sociais. Suas frases de
espírito eram repetidas. O
corte
da sua lapela era imitado. Todos concordavam: Rudi estava perdendo o
seu tempo como um subalterno.
Era
um executivo nato.
Não
demorou muito para ser convidado a dirigir um grande consórcio de
empresas com capital estrangeiro, depois de maravilhar os donos
americanos com a sua pronúncia de inglês e seu conhecimento de
bourbons. Sua vida então passou a ser um anúncio de Hiltons. Só na
decoração do seu escritório gastou toda a verba de RP das suas
empresas, e em seis meses estava na rua, com indenização suficiente
apenas para pagar a conta do paté.
Je
ne sais quoi não faltava a Rudi. Faltava, faltava... Faltava ele não
sabia o quê.
Luís
Fernando Veríssimo, in As mentiras que os homens contam
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